A arte expande os limites da linguagem: uma homenagem ao professor Carlos Ayres Britto

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Em 18 de novembro, daqui a poucas semanas, o professor Carlos Ayres Britto celebra mais um ciclo de vida. Para a alegria daqueles que o conhecem e, até mesmo, dos que nunca cruzaram seu caminho, mas sentiram, em suas vidas, os efeitos de seus votos condutores e da sua defesa firme e sensível dos direitos fundamentais, um novo ano se anuncia como um tributo à justiça que ele tão profundamente inspira[1].

Mencionar o professor Ayres Britto sempre me faz recordar, antes mesmo de pisar no curso de Direito, as vezes em que, nos jornais e nas sessões da Corte, eu escutava algo curiosamente estranho e, ao mesmo tempo, familiar. Estranho, por não ser comum em ocasiões como aquelas; mas familiar, porque, de algum modo, também me pertencia: era o sotaque doce e forte de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) vindo de raízes nordestinas.

Tê-lo como mestre é ser convidado, a cada aula, a mergulhar nas profundezas das palavras, navegando por um vasto mar de sentidos, e, inclusive, emoções. Seu discurso, leve como brincadeira para quem prefere flutuar na superfície — ou, como ele diz, “ficar pela rama” —, revela, para os que se deixam submergir, um traço marcante de sua visão: a arte expande os limites da linguagem.

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Como diz Ferdinand de Sausurre, a linguagem é “o cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social”. A linguagem, pois, “tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro”[2]. É dizer: por meio dos signos que utilizamos em nosso processo de comunicação intersubjetiva é que nós sentimos e interpretamos a nossa realidade.

Em termos kantianos, temos que a relação entre o mundo como ele é (noumenon) e o que conseguimos depreender do mundo (phaenomenon) é intermediada e limitada pela nossa linguagem[3]; como afirmou Ludwig Wittgenstein, “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”[4].

Este raciocínio implica reconhecer, pois, que a arte expande os limites do nosso mundo.

A linguagem não se esgota nas palavras e no vocabulário, mas se estende para outros campos e conseguimos identificar na música, na pintura e na dramaturgia signos que transcendem a palavras dita ou escrita. A arte consiste na livre manifestação de significados, por meio de signos e códigos que ela mesma colhe, escolhe e desenvolve.

Desta forma, é seguro concluir que experimentamos o mundo ao nosso redor e inclusive nossas próprias emoções por meio da arte; a música, a literatura, a arquitetura, a dança e a literatura nos permitem interpretar o mundo e a nós mesmos de uma forma que não conseguiríamos pelo vocabulário padrão. A arte, com a sua forma plástica de lidar com signos e significados, expande os limites da nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.

Neste sentido a obra de Gadamer, que em sua obra Verdade e Método argumenta que experiência artística, mesmo não sendo ciência, carrega uma forma própria de verdade, desafiando a ideia de que a arte pode ser reduzida à uma abstração estética puramente subjetiva. A arte, além de ser uma forma de expressão estética, é um espelho da verdade humana, que transcende os métodos científicos; uma verdade partilhada e com significados[5].

Descortinados estes conceitos é que podemos entender que a linguagem, muitas vezes poética e metafórica, característica do professor e ministro Carlos Ayres Britto é mais do que uma simples escolha de estilo. É uma maneira de expressar raciocínios jurídicos que o vocabulário padrão não seria capaz de expressar com precisão. Suas metáforas e alegorias são chaves que destravam portas para dimensões mais profundas dos significados das normas jurídicas. Nelas a racionalidade jurídica encontra espaço para respirar e se expandir, como uma flor que se abre ao sol.

O ministro Ayres Britto libertou os casos que julgou de uma gaiola de linguagem comum e os deu asas: os sentiu e compreendeu; exprimiu com clareza o que sentia e compreendia e esculpiu votos que seguirão guiando o mundo jurídico, seja pelas suas conclusões ou seja pelo seu método. Transcendendo o frio rigor do jargão legal, ele desvelou as camadas mais íntimas e humanas da Constituição, ampliando o horizonte dos direitos fundamentais e tornando-os mais acessíveis, sem jamais abdicar do rigor jurídico.

Sua arte de tecer imagens e sua maestria em transformar o jurídico em algo com vida iluminam o que, para muitos, poderia ser apenas abstração. Com sua linguagem tão própria, ele trouxe os cidadãos para mais perto da Justiça, fazendo com que suas decisões fossem não apenas compreendidas, mas sentidas. Essas figuras de linguagem não eram meros adornos, mas pontes que levavam ao âmago dos princípios constitucionais. Ao falar da liberdade de imprensa como “o oxigênio da democracia” ou da moralidade pública como “o sol que ilumina a democracia”, Ayres Britto não apenas transmitia uma ideia jurídica, mas a tornava vívida, tangível, iluminando sua relevância para a vida em sociedade.

Em questões complexas, como o reconhecimento da união homoafetiva ou a pesquisa com células-tronco, suas decisões não foram meras aplicações de normas, mas desvelaram os conceitos escondidos no texto legal. Assim, a linguagem expressiva de Ayres Britto não apenas adornava seus votos, mas facilitava o florescimento de raciocínios jurídicos profundos, permitindo que questões complexas fossem tratadas com a suavidade e o respeito que merecem. É o que ocorre quando o professor menciona, em aula, que “o conteúdo não pode implodir o continente”, para explicar por que o poder constituído reformador da Constituição não tem hierarquia de poder constituinte; ou quando argumenta que a criatura não pode ser criadora de seu criador.

E as questões complexas não foram poucas. Enquanto ministro, o professor Ayres Britto relatou, dentre outros, o caso do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos (Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI] 3.510); o caso da Raposa Serra do Sol, em torno da demarcação contínua de terras indígenas (Petição 3.388); a análise de constitucionalidade da Lei de Imprensa (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF]130); e o emblemático julgamento em que o STF garantiu direitos iguais para uniões homoafetivas (ADI 4.277), que foi certificado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como patrimônio documental da humanidade.

O ministro Ayres Britto, na ADI 3.510, aborda a grandiosidade do papel da mulher, especialmente da mulher-mãe, como guardiã de um mistério que transcende o simples entendimento científico. Ele evoca o “cosmo”, símbolo do vasto e insondável, para expressar a profundidade dessa conexão feminina com a vida. O útero materno, neste contexto, não é apenas um órgão, mas um “líder” silencioso, uma força cósmica capaz de gerar e nutrir a existência.

Ao mencionar a “aura de exaltação da mulher”, Britto convida à reflexão sobre o sexto sentido, aquele que não pode ser captado pela razão, mas sentido na essência do ser, “nos domínios do inefável ou do indizível”. É a mulher-mãe que, nas suas palavras, carrega em si o poder criador, transcendente e quase divino, sendo portadora de um saber que “subjacente à cientificidade”, escapa à linguagem comum, acessível apenas à sensibilidade mais profunda.

Em seu voto no caso da Petição 3.388, ele esclarece que a terra indígena transcende a visão meramente jurídica, convertendo-se em um ser vivo que pulsa e respira junto ao seu povo. No imaginário coletivo indígena, essa terra é mais que solo, é um ente sagrado que contém, em seu seio, o espírito dos antepassados, dos vivos e daqueles que ainda virão. Segundo o ministro, a terra “ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia”.

Ela é o elo que une o tempo e o espaço, “resumindo em si toda ancestralidade”, carregando consigo as histórias passadas, vivenciando o presente e projetando-se em direção ao futuro de sua etnia. Não é, pois, um “simples objeto de direito”, mas sim a própria alma de um povo, onde o tempo é circular e a vida, eterna.

No caso da ADPF 130, o ministro cravou que a imprensa, na sociedade, atua como uma “locomotiva sócio-cultural ou ideia-força”. Para ele, “a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação”, pois é “verdadeira irmã siamesa da democracia”. Ainda, aponta a liberdade como “um rio impetuoso cujo único anseio é não ter margens”, de forma que a liberdade de imprensa deve operar sem margens fixas ou censura, ajustando-se apenas pelos limites que uma sociedade democrática e pluralista define ao longo do tempo.

Ao tratar da proteção, pelo Estado, da união homoafetiva (ADI 4.277), o ministro destaca “a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração”. A metáfora do “navio chamado coração” descreve com clareza a liberdade afetiva, em uma defesa eloquente de uma autodeterminação afetiva que transcende os padrões sociais comuns. O ministro define a união afetiva como “um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro”.

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Em outras palavras, o ministro Ayres Britto defende, com clareza, a liberdade de amar, o que é colocado em bom vernáculo também por Johnny Hooker, ao cantar que “ninguém vai poder querer nos dizer como amar”.

Não há alma sensível que não sinta suas palavras e argumentos. Seria uma boa forma de resumir: os ensinamentos do professor Ayres Britto não são apenas aprendidos, mas sentidos, e por isso mais bem compreendidos do que o seriam se estivessem restritos ao vernáculo técnico e burocrático. Sua linguagem expande os limites daquilo que pode ser exprimido e compreendido no universo jurídico, as diversas situações (a priori) indizíveis da realidade.

E assim, como quem desliza pelas notas de uma sinfonia ou pelas linhas de um poema, o professor Ayres Britto segue nos lembrando, a cada voto, a cada aula, que o Direito não é apenas uma questão de regras e estruturas, mas que está na dimensão da linguagem e, por isso, depende de interpretação, de criação, de arte.

O jurista é um artista cujo instrumento são suas palavras. Desta forma é o professor, enquanto ministro, foi um ministro-artista, cujo instrumento foram seus votos. Uma arte que expandiu os limites da linguagem, e que encontrou, em sua sensibilidade e compromisso, um de seus maiores intérpretes. Vida longa ao professor Carlos Ayres Britto!


[1] Na oportunidade agradeço, também, ao Professor Sandro Dezan, pela sua abordagem cativante de temas sobre fenomenologia e linguagem, e por compartilhar seu entusiasmo pelas obras de Hans-Georg Gadamer e Ludwig Wittgenstein com todos ao seu redor.

[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Organização de Charles Bally e Albert Sechehaye. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28ª edição. São Paulo: Cultrix, 2012, p. 41.

[3] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 251-255.

[4] Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de C. K. Ogden. Edição bilíngue. 1. ed. Londres: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., Ltd., 1922, p. 144).

[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 169.

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