Homo neoliberalis e a escala 6×1

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Não é novidade que o modelo social, econômico e político vigente, conhecido como capitalismo, é intrinsecamente marcado por contradições. Essas contradições não apenas sustentam o sistema, mas também o impulsionam a se renovar constantemente, especialmente em momentos de crise econômica. Crises que, longe de serem falhas do modelo, tornam-se instrumentos para sua perpetuação, viabilizando inovações por meio da apropriação de linguagens, movimentos e anseios sociais.

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O Brasil vive, atualmente, uma efervescência social desencadeada pelo “Movimento Vida Além do Trabalho” (VAT), popularizado pelo vereador carioca recém-eleito Rick Azevedo e pela deputada federal Erika Hilton. O movimento propõe o fim da escala de trabalho 6×1, na qual o trabalhador labora seis dias consecutivos e descansa apenas um. Essa mobilização, em certa medida, pode parecer inusitada, considerando que, nas recentes eleições municipais, o discurso público brasileiro parecia homogeneizado pelos ideais neoliberais amplamente promovidos por políticos de direita e extrema-direita.

Desde a década de 1970, pelo menos, é sabido que o neoliberalismo molda subjetividades por meio de uma racionalidade de mercado, influenciando comportamentos através de valores como autogestão, competição e responsabilidade individual. Ao redefinir a pessoa não mais como cidadã, mas como “empreendedora de si”, esse modelo transformou profundamente as democracias e o próprio ideal democrático.

O discurso neoliberal, frequentemente alinhado à narrativa religiosa, promove a ideia de que cada indivíduo é responsável por seu próprio destino, incentivando um investimento constante em si mesmo. O sucesso econômico passa a ser interpretado como uma virtude moral, enquanto fracassos são atribuídos à falta de esforço, disciplina ou planejamento. Essa perspectiva glorifica histórias de superação empreendedora, transformando a prosperidade material em um ideal superior. Paralelamente, o fracasso é visto como um desvio moral, reforçando a produtividade extrema e o autossacrifício como mecanismos de redenção.

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Ao integrar ética, economia e existência em um único modelo, o neoliberalismo não apenas promove o consumo e a produtividade como valores centrais, mas também otimiza seus mecanismos de controle, regulando corpos, comportamentos, desejos e identidades. Essa massificação, amplificada pela cultura e pelo entretenimento – como filmes, séries, novelas e best-sellers –, reduz o senso crítico e promove conformidade ideológica, reforçando o individualismo e a alienação.

No entanto, essa engrenagem ideológica encontra limites quando confrontada pela experiência concreta da classe trabalhadora. O inconformismo com a escala 6×1 expõe as entranhas de um sistema que, mesmo culturalmente normatizado e biopoliticamente regulado, gera sofrimento e insatisfação material.

O Brasil, que ocupa a terceira posição no ranking mundial de adoecimento e mortes relacionadas ao trabalho, é um exemplo emblemático das contradições desse modelo. A experiência concreta de exploração dos trabalhadores desafia a lógica neoliberal, evidenciando a necessidade de condições laborais menos opressivas e mais humanas.

Os atores que sustentam o status quo – sejam políticos, religiosos ou representantes do mercado – enfrentam um desafio hercúleo: continuar defendendo os interesses do capital como se fossem os mesmos dos trabalhadores, enquanto a materialidade das condições laborais escancara as contradições de um sistema que privatiza lucros e socializa prejuízos.

O discurso usual da direita e da extrema-direita brasileiras vivencia, neste momento, um impasse e, apesar da quase hegemonia que parece ter atingido no país, revela sua idiossincrasia própria, com alas políticas apostando no apelo ideológico marcado pela repetição de mantras relacionados ao valor do trabalho e a perniciosidade dos movimentos de esquerda e do comunismo, enquanto outras, rendendo-se ao apelo popular, em evidente contradição principiológica, apoiam ao menos a discussão da matéria pelo Congresso Nacional.

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Os argumentos contrários ao fim da escala degradante de trabalho estão ideologicamente alinhados ao sujeito neoliberal concebido como “empreendedor de si”. Estranhado das formas tradicionais de trabalho e exploração da sua mão da obra, o trabalhador contemporâneo está convencido de que possui seu próprio capital, no caso, o “capital humano” e, enquanto “capitalista”, adere à narrativa de que o aumento do custo produtivo levará o sistema ao colapso, sem perceber, no entanto, o que verdadeiramente está em xeque: uma pequena redução na lucratividade que apesar de já ser vultosa, para o verdadeiro capitalista deve ser constante, crescente e acumulada. 

O momento é auspicioso para a luta por melhores condições de trabalho, mas se o sistema político é, sabidamente, administrado por aqueles que possuem muito e nunca se esquecem de defender seus próprios interesses, os desafios impostos à classe trabalhadora são igualmente colossais.


ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985.

ARDOT, P.; LAVAL, C.. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.

COELHO, Alan da Silva (2021). Capitalismo como religião: Walter Benjamin e os teólogos da libertação. São Paulo: Recriar

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PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: 2014. Tradução de Monica Baumgarten de Bolle.

 

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