Por uma pacificação da judicialização de planos de saúde

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O Judiciário não é o Poder adequado para organizar e executar as políticas de saúde. Essa é uma afirmação extraível dos recentes julgamentos promovidos no âmbito do STF, dos quais derivaram duas novas decisões vinculantes. No âmbito da Súmula 60, o julgamento demonstrou que o Supremo identificou uma série de efeitos negativos da judicialização da saúde pública. A soma de decisões adotadas caso a caso, sem a perspectiva sistêmica, estava transformando o Judiciário em um gestor público, cujas escolhas alocativas eram pautadas exclusivamente em requerimentos individuais e não em políticas estruturantes. Em um bom resumo, tutelava-se a saúde a partir do princípio da inércia. A máxima de que o direito não socorre a quem dorme ganhava outros contornos, desassistindo a população mais vulnerável, incapaz de saber o que é o Poder Judiciário, o SUS, o direito, as garantias fundamentais etc.

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Em termos práticos, por meio da Súmula 60, o Judiciário se autoconteve, diminuiu seu espaço de interferência na gestão da saúde pública, especialmente prestando deferência ao regime técnico de incorporação de novas tecnológicas no âmbito do SUS. Como toda decisão generalizada acaba por causar certas injustiças, a posição adotada mais desenhou um caminho a ser seguido em cada caso concreto, do que ordenou postura rígida e específica aos magistrados. A regra geral é a de que o fornecimento de terapias está condicionado àquilo que já foi objeto de incorporação pelo SUS. Ao cidadão que desejar tratamento para além disso, recairá o ônus de demonstrar seu enquadramento nas hipóteses excepcionais.

O que se espera daqui em diante é que haja uma diminuição da judicialização do tema. Essa, aliás, é uma pretensão da própria sistemática de precedentes vinculantes existente hoje na legislação processual brasileira. Essa diminuição: de um lado, pacifica a relação da sociedade com o Estado; de outro, permite que o Judiciário tenha mais recursos disponíveis (tempo, em especial) para analisar os casos que fogem à regra.

Para além disso, houve a edição da Súmula 61, a qual marca o exercício da consensualidade por parte do STF, que viabilizou uma dinâmica contratada de distribuição de responsabilidade entre a União e as entidades subnacionais. Esse acordo homologado diminui as chances de que certas decisões judiciais promovam forte desorganização no orçamento de entes federativos de baixa arrecadação. Aqui, o mais importante viés da pacificação promovida, típico resultado da valiosa e subutilizada faceta judicial conciliatória.

Considero, por tudo isso, um grande sucesso o novo standard da judicialização da saúde. Dito isso, uma questão que exsurge é a possibilidade de exportar essa estratégia de pacificação, conquistada para o sistema público de saúde, também para a saúde suplementar.

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O primeiro passo a viabilizar essa conquista é não confundir essa exportação como uma benesse concedida às operadoras de planos de saúde, para que deixem de honrar com obrigações legalmente impostas. Há de se compreender a saúde suplementar como um setor de relevância pública (nos termos do artigo 197 da Constituição Federal), e sua regulação como uma política econômica voltada a fazê-lo contribuir com a saúde pública. A conquista é social, portanto. Eventual benefício às operadoras será externalidade derivada da consecução das finalidades públicas.

E esse ponto de partida parece já estar bem estabelecido no âmbito do STF, tal como se vê do julgamento de constitucionalidade da Lei 14.307/2022, promovido em 2023 no âmbito das ADIs 7088 e 7183. Neste julgamento, as premissas que embasaram a edição da Súmula 60 estão inegavelmente presentes. Em resumo, o STF reconhece que, também na saúde suplementar, a incorporação de novas tecnologias não pode ser feita caso a caso, demandando “pesquisa, estudo das evidências, realização de reuniões técnicas, oitiva de interessados” etc. Do mesmo modo, confirma a lógica sistêmica, asseverando que a “avaliação econômica contida no processo de atualização do rol pela ANS e a análise do impacto financeiro advindo da incorporação dos tratamentos demandados são necessárias para garantir a manutenção da sustentabilidade econômico-financeira do setor de planos de saúde”. Tudo isso, voltado a “garantir que os usuários de planos de saúde continuem a ter acesso ao serviço e às prestações médicas que ele proporciona”.

O curioso é que a decisão referente às ADIs foi proferida em janeiro de 2023. Ao final daquele ano, o CNJ constatou aumento de 60% no número de ações movidas por beneficiários contra operadoras de planos de saúde. Talvez seja cedo para afirmar, mas é possível ao menos intuir que, sem efeito vinculante, a estrutura judicial tende a não seguir as orientações de seu órgão maior, ao menos quando o assunto é plano de saúde. Sinal claro disso, é que em 2022, já houve decisão semelhante na esfera do STJ (EREsp 1886929 e 1889704), a qual também se mostrou incapaz de conter o avanço desenfreado da judicialização da saúde suplementar.

A busca por um efeito vinculante, portanto, parece ser um passo fundamental para que as conquistas sociais obtidas para a saúde pública possam ser exportadas à saúde suplementar. Mas, é inevitável concluir que uma decisão desse perfil causaria enorme tumulto na sociedade. A estrutura judicial é hostil às operadoras de planos de saúde, em resumo, porque reflete o sentimento da sociedade em relação ao setor. Essa hostilidade não se resolve a fórceps. Viu-se isso, quando do já referido julgamento do STJ. Na ocasião, uma decisão da Corte favorável ao sistema suplementar foi rapidamente superada por uma lei editada em passos acelerados, na qual se tentou devolver ao rol da ANS o status de exemplificativo, que fora afastado no julgamento da Corte Superior.

Portanto, a pacificação conquistada no âmbito da saúde pública só será exportada à suplementar se o passo vinculante for dado em conjunto com o consensual. O que se viu no âmbito das decisões do STF, voltadas ao tema da saúde pública, foi a conformação do direito à saúde (Súmula 60) alinhada à construção consentida de procedimentos administrativos e judiciais para o exercício desse direito modulado (Súmula 61). A formulação do acordo derivou de 23 reuniões, nas quais participaram representantes de todas as esferas federativas, além de relevantes atores da sociedade civil organizada. A solução construída não é estanque, permitindo maleabilidade dos gestores públicos e do próprio Judiciário. Dá ritmo para que a evolução tecnológica siga guiando a prestação do serviço público, sem esquecer dos limites econômico-financeiros inevitáveis a qualquer política pública.

A via consensual, provavelmente, é a alternativa possível a encerrar o hiperjudicialização dos planos de saúde. É evidente que tomará igual ou até mais tempo do que aquele despendido para a conformação do acordo do qual a Súmula 61 derivou. É certo que a pacificação não será sinônimo da ampla satisfação de todos os envolvidos e atingidos pela decisão. Um acordo desse perfil garantirá um mínimo de convergência. A seguir aquilo concebido, definirá maior deferência do Judiciário à dinâmica técnico-regulatória de incorporação da ANS, garantindo olhar especial para os casos que se revelarem excepcionais. Nada de muito novo, em teoria. Mas a prática da autocontenção judicial entrega resultados sistêmicos relevantes para o setor da saúde suplementar e para a sociedade.

Do contrário, a saúde suplementar seguirá sua tendência atual: cada vez menos operadores, ofertando planos cada vez mais caros, para uma população cada vez mais envelhecida. Neste cenário, todas as contribuições da saúde suplementar para a pública irão se desfazer, colocando em risco o próprio êxito conquistado para a saúde pública, no âmbito do STF.

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