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O reconhecimento do direito à saúde no Brasil pela Constituição de 1988 teve um reflexo importante sobre todo o sistema de justiça brasileiro. A saúde é um valor social bastante sensível, ligado à dignidade do ser humano e diretamente à vida. A ausência de saúde pode causar incapacidades, dor, sofrimento e até a morte; a necessidade de bem-estar físico, mental e social é condição essencial para a vida digna, para que todos possam se desenvolver física e psicologicamente em sua plenitude durante o pequeno período de tempo que a cada um de nós é concedido nesta Terra.
Nos tempos modernos, e cada vez mais, as novas tecnologias na área da saúde prometem e entregam soluções fantásticas para curar doenças, diminuir sofrimentos e melhorar o bem-estar individual e coletivo. Ao mesmo tempo, essas novas tecnologias são produzidas e comercializadas em meio a lógicas de mercado que as tornam caras e inacessíveis a grandes parcelas da população. A depender do tipo de tecnologia, nem mesmo os mais ricos são capazes de arcar com os custos de certos tratamentos inovadores, principalmente os relacionados às doenças raras, às neoplasias ou às incapacidades físicas e motoras.
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O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e suas desigualdades e pobrezas impactam o setor saúde de forma contundente. Ao menos 170 milhões dos brasileiros dependem única e exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), magnífica engenharia jurídica e institucional criada pela Constituição Federal para organizar o sistema público de saúde no país, financiado com recursos públicos por meio da solidariedade fiscal e voltado a garantir acesso à saúde universal, igualitário e gratuito para todos os brasileiros e brasileiras.
Não é de espantar, portanto, que o direito à saúde seja nos dias de hoje no Brasil um campo de conflitos, tanto no setor público quanto no setor privado. Existe um abismo econômico-financeiro-social entre as promessas da ciência e o momento do ingresso real das novas tecnologias nos serviços dos sistemas de saúde, entre as promessas das novas tecnologias e a forma como se introjetam no imaginário social e a capacidade do Estado e do mercado de oferecer acesso a essas novas tecnologias.
No setor público, embora o SUS represente um dos principais avanços civilizatórios da Constituição, o fato é que o sistema de saúde público brasileiro ainda é bastante deficiente para atender plenamente as necessidades de saúde da população, seja em decorrência de um subfinanciamento crônico, seja em decorrência dos desafios de gestão e de organização de um sistema de saúde dessa envergadura.
Já no setor privado, a reorganização do setor de saúde suplementar no Brasil, com a criação dos Planos de Referência (Lei 9659/1999) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (Lei 9961/2024), fez surgir um mercado consumidor de mais de 50 milhões de brasileiros que buscam na saúde privada uma qualidade e eficiência que pensam não encontrar no sistema público. No entanto, esse setor também apresenta deficiências e injustiças gritantes, sendo responsável por grande parte dos conflitos sociais e judiciais que ocorrem no campo da saúde no país.
Esse enorme potencial de conflitos decorrentes dos sistemas de saúde nacionais, seja o público ou o privado, aliado ao reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado pelo Art. 196 da Constituição Federal de 1988, resultou no fenômeno da judicialização da saúde, que no Brasil atinge magnitude e características muito específicas, não encontradas em qualquer outro país do mundo. Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam para mais de um milhão de processos judiciais demandando saúde no país, seja contra o Estado (União, Estados, DF e Municípios), seja contra os planos de saúde, médicos ou outros estabelecimentos privados de saúde¹.
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A amplitude de competências decisórias estatais do Poder Executivo no que se refere à conformação do direito à saúde no Brasil não afasta a possibilidade de que essas decisões sejam objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Isso vale tanto para a Relação Nacional de Medicamentos, fixada pelo Ministério da Saúde, quanto para o Rol de Procedimentos da Saúde Suplementar, fixado pela ANS. A partir do momento em que a saúde é reconhecida como um direito, a judicialização de conflitos inerentes a esse direito, seja nas esferas pública ou privada, passa a ser potencialmente possível sempre que a regulamentação dada pelo Poder Executivo (ou até pelo Legislativo) não atender a uma necessidade básica e imediata de saúde de uma pessoa ou uma coletividade.
A democracia e do estado democrático de direito possuem como garantia constitucional fundamental a inafastabilidade da competência do Poder Judiciário em apreciar qualquer lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5o, XXXV). Esta garantia fundamental assegura a todos (individual ou coletivamente) a possibilidade de levar para apreciação e decisão final do Poder Judiciário quaisquer demandas relacionadas à proteção de direitos, de qualquer natureza, inclusive demandas contra decisões executivas ou legislativas tomadas pelos demais poderes. A proteção constitucional ao direito de discutir toda e qualquer decisão estatal perante o Judiciário é tão forte que veda expressamente que essa garantia seja limitada por lei. Dessa maneira, toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito habilita o cidadão a recorrer ao Judiciário. No Brasil, portanto, quaisquer decisões estatais em saúde exaradas pelo Executivo ou pelo Legislativo poderão ser discutidas judicialmente pelos cidadãos. Essa garantia tem sido fundamental para a democracia sanitária brasileira, uma vez que tem permitido ao Judiciário reverter omissões, ilegalidades ou abusos cometidos pelo Poder Executivo e até pelo Poder Legislativo.
As decisões estatais em saúde, tomadas no âmbito do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, são responsáveis pela conformação real da abrangência do direito à saúde e de suas garantias concretas na sociedade. A participação do Judiciário nesse processo, portanto, deve ser vista como algo natural. O que o país necessita é qualificar as decisões estatais em saúde, em todos os poderes, inclusive no Poder Judiciário, para que se possa efetivamente proteger o direito à saúde individual e coletiva de forma eficaz e sustentável. Uma estratégia que vem sendo adotada para essa qualificação é a institucionalização de órgãos e mecanismos de tratamento da judicialização da saúde em vários dos atores responsáveis pela efetivação do direito à saúde. Assim, há mais de uma década estamos presenciando a criação de grupos especializados em direito à saúde nos ministérios públicos da União e dos estados, assim como nas defensorias públicas; de núcleos de apoio técnico ao Poder Judiciário (os NAT-JUS) para decisões em saúde; de varas especializadas em saúde; de órgãos dedicados à cuidar da judicialização da saúde no Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios (na União, exemplo, foi criado no Ministério da Saúde o Departamento de Gestão das Demandas Judicialização da Saúde); entre outras iniciativas de institucionalização.
Destaque-se nessa evolução institucional, ainda, as recentes decisões dos tribunais superiores do Brasil sobre temas de saúde, com repercussão geral. Vale lembrar, apenas a título de exemplo, as recém aprovadas Súmulas Vinculantes n. 60 e 61 do Supremo Tribunal Federal (STF), ou ainda a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ressalvados alguns parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.
A articulação entre as diferentes instituições e órgãos envolvidos na implementação das políticas públicas de saúde no Poder Executivo, de um lado, e na decisão de ações judiciais que envolvem saúde, de outro, é elemento essencial para sua eficácia. Uma decisão estatal final resolutiva e eficaz na proteção dos direitos humanos depende dessa articulação estatal eficiente, que aproxime Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de saúde, magistratura, defensorias públicas, ministérios públicos, advocacia e sociedade civil. É justamente para este fim é que essas novas institucionalidades vêm sendo criadas, visando ampliar a capacidade de compreensão e solução de conflitos em saúde pelo Estado e oportunizar experiências democráticas e interinstitucionais eficazes para a efetiva proteção do direito à saúde.
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A efetivação do direito à saúde mostra-se complexa e impõe deveres aos três poderes estatais. O Poder Executivo possui, nesse contexto, uma responsabilidade estratégica na medida em que a garantia do direito à saúde deve dar-se, prioritariamente, por meio de políticas sociais e econômicas (CF, art. 196). As falhas na política pública devem e sempre poderão ser corrigidas pelo Poder Judiciário, mas impõe-se uma atuação harmônica e articulada entre esses poderes para que as demandas individuais e coletivas da sociedade por bens e serviços de saúde sejam satisfeitas com eficácia, economicidade, transparência e resolutividade.
As novas institucionalidades que articulam os poderes estatais e qualificam as decisões tomadas pelo Estado para a efetivação do direito à saúde representam importantes avanços que devem ser observados e acompanhados atentamente. As novas institucionalidades para a solução de conflitos em saúde têm o potencial de se configurarem nos ambientes adequados para que os direitos individuais do cidadão, no que se refere ao direito à saúde, sejam garantidos plenamente pelas políticas públicas já ofertadas pelo Poder Executivo, sem a necessidade de se ingressar com demandas judiciais. A via judicial, nesse cenário, seria o último recurso para se obter do Estado bens e serviços de saúde que, por alguma razão excepcional, não estão sendo ofertados regularmente por meio das políticas públicas já disponibilizadas pelo Poder Executivo.
[1] Conselho Nacional de Justiça. Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas,causas e propostas de solução. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/f74c66d46cfea933bf22005ca50ec915.pdf