Os vícios da Lei 14.973/2024 sobre atualização de depósitos judiciais e administrativos

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Em 16/09/2024, foi publicada a Lei nº 14.973/2024 que, dentre outras questões, alterou as regras relativas à atualização de “depósitos realizados em processos administrativos ou judiciais em que figure a União, qualquer de seus órgãos, fundos, autarquias, fundações ou empresas estatais federais” (art. 35, caput), inclusive e especialmente os depósitos destinados à garantia de créditos tributários federais.

Sobre o assunto, até então se encontrava vigente o inciso I do § 3º do artigo 1º da Lei nº 9.703/1998, expressamente revogado pelo inciso IV do artigo 49 da nova Lei nº 14.973/2024, que determinava a atualização dos “depósitos judiais e extrajudiciais, em dinheiro, de valores referentes a tributos e contribuições federais”, mediante aplicação da Taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (“Taxa SELIC”).

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Agora, com a novel legislação, a referida regra de atualização de depósitos judiciais e administrativos federais foi alterada pelo inciso II do artigo 37 da nova Lei nº 14.973/2024, que dispôs que o “levantamento dos valores por seu titular, [serão] acrescidos de correção monetária por índice oficial que reflita a inflação”.

Em outras palavras, se até a vigência da Lei nº 14.973/2024 existia norma determinando que os depósitos judiciais e extrajudiciais, no momento do levantamento pelos contribuintes, seriam devolvidos com acréscimos da Taxa SELIC (composta de correção monetária e juros), a partir da nova regra serão atualizados somente pelo índice de correção monetária oficial que reflita a inflação, tal como ocorre com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (“IPCA”).

Apesar da mudança, tem-se necessário salientar que a nova sistemática só passará a viger após a sua regulamentação, de modo que, enquanto isso não ocorre, o regime anterior (da aplicação da Taxa SELIC) permanece vigente.

Pois bem. Em termos práticos, a mudança trazida pela Lei nº 14.973/2024 poderá implicar em diferenças relevantes nos valores depositados – no final de processos – a serem levantados pelos contribuintes que entendam por bem discutir algum tributo federal e que, visando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, escolham fazer o prévio depósito judicial, nos termos do inciso II do artigo 151 do Código Tributário Nacional (“CTN”).

E isso se dá, exemplificativamente, porque a Taxa SELIC acumulada nos últimos 12 (doze) meses corresponde a 10,7% (dez inteiros e sete décimos por cento), enquanto o IPCA acumulado no mesmo período corresponde a 4,24% (quatro inteiros e vinte e quatro centésimos por cento).

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Como consequência, a Lei nº 14.973/2024 traz verdadeiro desestímulo aos contribuintes em efetuar depósitos judiciais e administrativos federais, eis que:

(i)           vencendo a demanda (no final), receberão de volta (“levantamento”) a quantia depositada atualizada apenas pelo índice de correção monetária oficial que reflita a inflação (IPCA), quando poderiam investir o mesmo valor depositado em outro fundo/título – ainda que conservador – mas que lhe proporcione o recebimento de juros em contrapartida, tornando mais atrativa a apresentação de seguro garantia ou fiança bancária enquanto investe o montante que poderia ser depositado (ou enquanto utiliza o valor como capital de giro em sua atividade, o que foi mais vantajoso em termos econômicos); e

(ii)          perdendo a demanda (no final), a Autoridade Pública Federal procederá a “conversão do depósito em renda”, nos termos do inciso VI do artigo 156 do CTN, porém ainda assim estarão os contribuintes sujeitos a novas cobranças em relação às diferenças de valores decorrentes da aplicação dos distintos índices de atualização (SELIC na atualização do crédito tributário versus IPCA na atualização do depósito).

Ocorre que, ao assim dispor, o inciso II do artigo 37 da nova Lei nº 14.973/2024 acaba por ser inconstitucional, ofendendo as seguintes normas e princípios da Constituição Federal, quais sejam:

(i)           artigo 5º, caput, da Constituição por ofensa ao princípio da isonomia, verdadeira garantia fundamental que traduz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, merecendo destaque, neste tocante, o entendimento do E. Supremo Tribunal Federal (“STF”) no Tema nº 810 de Repercussão Geral, quando a Suprema Corte fixou tese no sentido da inconstitucionalidade de lei federal que disciplinou sobre “os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública” incidente “sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput)”;

(ii)          artigo 3º da Emenda Constitucional (“EC”) nº 113/2021, que estabeleceu a Taxa Referencial SELIC como sendo aquela aplicável “nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório”, de modo que a nova legislação está utilizando índice distinto do determinado constitucionalmente;

(iii)         alínea “b” do inciso III do artigo 146 da Constituição, que estabelece que cabe apenas à Lei Complementar estabelecer “normas gerais em matéria de legislação tributária”, inclusive sobre a extinção do crédito tributário, que por sua vez é tratada no artigo 156 do CTN, igualmente contrariado (como será mais bem demonstrado a seguir), visto que, na atualização por índice divergente do que aquele utilizado pelo Fisco Federal para a correção do débito exigido, a conversão em renda do valor depositado não será necessariamente mecanismo hábil à extinção do crédito tributário, tornando sem efeito a disposição do inciso VI do artigo 156 do Codex.

Não bastassem as inconstitucionalidades acima referidas, o inciso II do artigo 37 da Lei nº 14.973/2024 também nasceu ilegal, ofendendo as seguintes Leis Federais:

(i)           inciso VI do artigo 156 do Código Tributário Federal (Lei nº 5.172/1966, recepcionada com status de Lei Complementar por força do disposto no § 5º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT), pois, considerando a divergência entre os índices de atualização do crédito tributário federal (SELIC) com aquele que atualiza o depósito judicial (IPCA), restará mitigada a eficácia do instituto da “conversão de depósito em renda”, que não exatamente implicará na extinção do crédito tributário, de modo que, mesmo após o depósito ser destinado em favor do Fisco Federal, ainda poderão remanescer valores em aberto que serão exigidos pela Autoridade Fiscal; e

(ii)          Lei nº 6.830/1980 – Lei de Execuções Fiscais (“LEF”), considerando especificamente:

  1. a) 1º do artigo 32, que disciplina que “[o]s depósitos de que trata este artigo estão sujeitos à atualização monetária, segundo os índices estabelecidos para os débitos tributários federais”, visto que, enquanto a LEF determina que o depósito judicial será atualizado pelo mesmo índice do débito executado, a novel legislação determina que o depósito judicial seja atualizado por índice que reflita a inflação, havendo evidente conflito normativo;
  2. b) inciso I do artigo 9º, que determina que, “[e]m garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá efetuar depósito em dinheiro, à ordem do Juízo em estabelecimento oficial de crédito, que assegure atualização monetária”, pois, por força da nova lei, o depósito judicial poderá não ser realizado em instituição financeira que assegurará a atualização monetária, já que o índice aplicável poderá ser inferior ao do débito;
  3. c) 4º do artigo 9º, que estabelece que “o depósito em dinheiro […] faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora”, já que, se a instituição financeira não irá mais corrigir o valor depositado pelo mesmo índice que é aplicado ao débito executado (usando índice distinto), ao final do processo, o contribuinte poderá ser responsabilizado a complementar o valor em função da discrepância existente entre os índices de atualização;
  4. d) e apesar da nova Lei nº 14.973/2024 ter o mesmo status da Lei nº. 6.830/1980 (sendo as duas leis ordinárias), o fato é que esta última é norma especial que prevalece sobre a novel legislação (norma geral), nos termos do § 2º do artigo 2º do Decreto-Lei nº. 4.567/1942 – Lei de Introdução às Normas de Direito brasileiro (“LINDB”).

Com isso, é de se concluir que o inciso II do artigo 37 da Lei nº 14.973/2024 (i) é inconstitucional em razão da violação: a) ao princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição; b) ao artigo 3º da EC nº 113/2021, que disciplina sobre o índice de atualização aplicável contra a Fazenda Pública; e c) à alínea “b” do inciso III do artigo 146 da Constituição, que dispõe que apenas a Lei Complementar pode tratar da extinção do crédito tributário, por se tratar de norma geral de Direito Tributário.

Por fim, é de se concluir, também, que o inciso II do artigo 37 da Lei nº 14.973/2024 (ii) é ilegal por ter também ofendido: a) o inciso VI do artigo 156 do CTN, que dispõe sobre a conversão em renda como meio de extinção do crédito tributário; e b) o § 1º do artigo 32 e o inciso I e o § 4º do artigo 9º da Lei nº 6.830/1980, que tratam sobre a atualização dos depósitos judiciais, que devem ser assegurados pela instituição financeira, eximindo o contribuinte da responsabilidade de complementação futura.

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