O esvaziamento do Legislativo e o avanço das agências reguladoras superpoderosas

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A celeuma em torno dos limites do poder normativo infralegal e o problema do gradual, mas cada vez mais visível e avassalador, esvaziamento da reserva legal e, portanto, do próprio Poder Legislativo tem tido cada vez mais lugar de destaque na pauta da academia e dos Tribunais, inclusive e em especial do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, vale conferir recente texto de Renato Toledo publicado no JOTA em 31.10, sugestivamente intitulado “O abuso regulatório na jurisdição constitucional. Uma nova fase para o controle das agências na agenda do STF”, onde o autor reconstrói a trajetória da Suprema Corte no tocante ao poder normativo das agências reguladoras. Da mesma forma, chama a atenção a manifestação do Ministro da Controladoria-Geral da União, Vinícius Marques, em matéria veiculada pela Folha de São Paulo, 02.11.24, no sentido de que “nenhuma autonomia é irrestrita”, referindo-se justamente às agências reguladoras.

O problema dos limites do poder normativo infralegal evidentemente não se restringe às agências reguladoras, mas diz respeito a todo um conjunto de situações em que órgãos não-legislativos, tem assumido, por delegação expressa, implícita ou mesmo nenhuma, prerrogativas regulatórias nem sempre manejadas de acordo com os princípios constitucionais mais elementares que regem (ou assim o deveriam) tal atividade. É o caso, v.g., do poder normativo de Conselhos como o CNJ e o CNMP, Tribunais, Conselhos Profissionais, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Medicina, ANVISA (v. o julgamento em curso no STF sobre o Tema de Repercussão Geral 1.252 sobre o abuso de poder regulamentar da Agência) dentre outros.

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Importa sublinhar, desde logo, para que não se venha a distorcer o objetivo e os fundamentos do presente texto, que não se trata de aqui demonizar o poder normativo infralegal em si, porquanto instrumento absolutamente indispensável para a boa-governança e consecução de objetivos jurídico-constitucionalmente legítimos, inclusive para a proteção de direitos fundamentais. Cuida-se, isto sim, de revisitar matéria sobre a qual já nos debruçamos em outras ocasiões, seja em articulados acadêmicos, seja em nível de pareceres jurídicos destinados a subsidiar demandas judiciais, tendo em conta a já referida intensificação nem sempre controlada (e autocontrolada) do uso de tais poderes normativos até mesmo para restringir de modo constitucionalmente questionável direitos e garantias fundamentais de pessoas naturais e jurídicas, ou mesmo daquilo que se tem denominado de garantias institucionais.

Os excessos no âmbito do exercício de poderes regulatórios, numa perspectiva jurídico-objetiva, também atraem problemas e desafios relacionados ao Estado Democrático de Direito, como é o caso, em especial, do esvaziamento do Poder Legislativo, arrastando consigo um crescente défice democrático, quando não também uma erosão das exigências do Estado de Direito, incluídas aqui a reserva legal e a proporcionalidade, sem falar nas teses dos que pregam uma quase que intocável discricionariedade técnica, que, a prevalecer, teria por corolário o afastamento do controle jurisdicional.

O problema, portanto, é o equilíbrio necessário e possível que haverá de ser encontrado para que, por um lado, a regulação possa de fato exercer suas funções num Estado Democrático de Direito, mas que, de outra parte, no exercício de suas competências, não extrapole os limites estabelecidos pela ordem jurídico-constitucional.

Dada a amplitude e complexidade do tema, iremos aqui, em caráter sumário, tecer apenas algumas considerações sobre a possibilidade de atos normativos não veiculados por lei em sentido formal (e muitas vezes sequer por lei em sentido apenas material) estabelecerem restrições a direitos fundamentais, v.g., da liberdade econômica.

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Que os direitos fundamentais não são direitos absolutos, no sentido de totalmente blindados em face de qualquer limite ou restrição, já corresponde ao senso comum na gramática constitucional, não sendo à toa, portanto, que já se disse que a relevância prática dos direitos fundamentais está estreitamente vinculada à ocorrência de uma restrição, ou seja, de uma intervenção em seu âmbito de proteção, de tal sorte que “estudar os direitos fundamentais significa principalmente estudar suas limitações”.

Todavia, ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais podem ser restringidos, tal possibilidade não implica na outorga de um “cheque em branco”, visto que toda e qualquer restrição, para que não se transmute em violação, deve observância a um conjunto de limites diretos ou indiretos postos pela ordem constitucional, designadamente, as exigências da reserva legal, da segurança jurídica, da proporcionalidade e do assim chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais.

No que diz respeito à reserva legal, considera-se que os direitos fundamentais, para que sofram processos restritivos no plano infraconstitucional, precisam estar acompanhados, em sua previsão constitucional, por reservas de lei, cuja função é a de servir de fundamento formal da competência do legislador infraconstitucional para a imposição de restrições aos respectivos direitos. Isso não significa, contudo, que direitos fundamentais não acompanhados de uma expressa reserva legal (como é o caso da liberdade econômica) possam ser restringidos de modo ilimitado e por qualquer um.

Seja como for, a previsão de reservas legais, ao mesmo tempo em que traz à superfície a possibilidade de restringir direitos fundamentais, compreende uma limitação, sobre cujo sentido e alcance se instaura uma controvérsia. Trata-se da extensão do sentido de “lei” nesse contexto. Assim, há que definir se quando a Constituição reserva à lei a competência de restringir o conteúdo de um direito fundamental, deve-se considerar exclusivamente a lei em sentido formal, oriunda do poder Legislativo, pelo que as reservas legais equivaleriam a reservas ao Parlamento, ou se, numa interpretação mais afrouxada, a expressão comportaria também a emissão de atos de matiz normativa oriundos dos demais poderes, a saber, atos administrativos e decisões judiciais originalmente restritivos.

A compreensão estrita, conforme a qual, na lição de Jorge Miranda, a previsão de reservas legais veda qualquer interferência, pelo menos à maneira principal e inaugural, por parte da Administração e da Jurisdição2, encontra cobertura na jurisprudência do STF. Assim, serve à maneira ilustrativa a seguinte decisão da nossa Suprema Corte:

“… O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei – analisada sob tal perspectiva – constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes”.

Nessa mesma toada não há como não citar passagens do voto do Ministro Gilmar Mendes quando do julgamento da ADI 4.874/DF, em 01.02.2018, ao divergir do encaminhamento da Relatora, Ministra Rosa Weber, e acompanhar o voto do Ministro Alexandre de Moraes.

(…) “A outra questão que está focada aqui diz respeito à temática da questão dos direitos fundamentais, já aqui enfocada. Quer dizer, eles disciplinam, esses órgãos todos, esses entes autárquicos entre nós acabam por disciplinar as relações com as entidades privadas ou até mesmo com as pessoas. Estamos falando do princípio da reserva legal ou princípio da legalidade em sentido estrito. Então, em muitos casos, poderíamos até discutir se uma dada lei poderia estabelecer tal restrição, à luz mesmo do princípio da proporcionalidade ou da defesa do núcleo essencial de um dado direito, mas aqui o que se discute é se o órgão regulador pode fazê-lo. Essa é a questão que se coloca, portanto, a questão da legalidade estrita. Isso é relevante, relevantíssimo. Porque veja a consequência até em termos de representatividade. Se um órgão desse jaez pode simplesmente decidir que determinada atividade fica autorizada ou proibida, nós estamos suprimindo, ainda que houvesse delegação, o poder do Congresso de legislar sobre isso, e estamos transferindo a um órgão burocrático. Esse é um problema seríssimo do ponto de vista constitucional”.

(…) “Mas a questão realmente que toca aqui é a questão da legalidade. Aí, podemos fazer exercício quanto à liberdade de iniciativa, quanto à liberdade profissional, porque, de um dia para outro, podem desaparecer profissões simplesmente porque a ANVISA, ou qualquer uma dessas agências, se investiu no poder de dizer que essa atividade faz mal à saúde ou a qualquer outro bem. Nós que não compreendemos: “poxa, mas a Constituição não diz que restrição à profissão tem que ser feita por lei?” – “Ah, mas, onde se lê lei, leia qualquer coisa.” – “Ah, houve delegação.” Se houve delegação nesses limites, afetando direitos fundamentais, nós temos um problema aqui não de legalidade, mas de inconstitucionalidade”.

(…)“O Brasil tem uma outra característica. Eu dizia que assistia a uma palestra, uma referência do sempre bem homenageado Everardo Maciel a propósito dessa temática – cigarro, bebida e tudo mais -, nós fazíamos uma prática tributária – e aqui não há questionamento – de elevação dos tributos em relação a esses produtos, se vão para as alturas, mas, diante da ineficiência do combate a contrabando, descaminho, nós temos a importação desbragada de cigarros. Essa é uma análise que a gente também tem que fazer – e que seria muito mais da competência do próprio legislador -, fazer uma análise para que se pudesse, inclusive, fazer uma checagem, afinal, da legislação vis-à-vi ao princípio da proporcionalidade” (…).

Uma atenta observação da abordagem jurisprudencial conduz à conclusão de que o entendimento encampado pela Corte Brasileira se insere num meio termo entre a integral negativa da possibilidade de direitos fundamentais serem restringidos por atos normativos que não a lei em sentido formal, e a sua absoluta e irrestrita permissão. A bem dizer, é o caso de considerar que, em determinadas circunstâncias, é legítimo e constitucional que um ato administrativo, por exemplo, restrinja um direito fundamental, desde que acoplado numa cadeia de fundamentação da qual decorra, para o Executivo, uma competência que advém em primeira linha da Constituição e, em seguida, da lei em sentido formal.
Na doutrina, por sua vez, é o que se encontra na posição ponderada de Gustavo Binenbojm:

“… Levar as reservas constitucionais de lei a sério não significa fechar os olhos para a imprescindível necessidade prática de atuação administrativa – concreta ou normativa – que envolva alguma margem de inovação. Mesmo na seara das restrições a direitos fundamentais, deve-se exigir a máxima determinabilidade possível das normas legislativas, mas, ao mesmo tempo, a abertura para o mínimo incomprimível de margem de livre decisão ou apreciação da Administração. Tal medida de prudência é especialmente relevante no campo do poder de polícia, em que as prognoses de perigo envolvem, não raro, avaliações técnicas e lastreadas na experiência dos administradores públicos. Com efeito, a ordenação sistêmica dos direitos fundamentais suscita, em certas situações, a necessidade imperiosa de a Administração compor colisões não constitucionalmente previstas e não integralmente reguladas pela lei entre bens constitucionais, sobretudo em hipóteses de conflitos entre direitos fundamentais. Em qualquer caso, legisladores e administradores devem pautar-se por juízos de ponderação proporcional que viabilizem o desfrute de direitos fundamentais e o seu convívio, em concordância prática, com outros direitos fundamentais e com interesses e aspirações coletivas democraticamente estabelecidos”.

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Também de acordo com a lição de Alexandre dos Santos Aragão, fica claro que não se pode dobrar o setor privado à satisfação de uma política pública, a saber, “as empresas que exercem essas atividades podem ser funcionalizadas e instrumentalizadas pelo Estado para a realização de políticas públicas, mas não elas próprias serem forçadas a executá-las”.

O fato é que a primazia em matéria de restrições a direitos fundamentais pertence ao legislador democraticamente legitimado, o qual, nem por isso, está autorizado a desbordar dos limites da reserva legal e das demais exigências constitucionais. No caso do exercício do poder regulamentar infralegal, os limites postos pela ordem jurídica são – e é correto que assim o seja – ainda mais rigorosos, de tal sorte que eventuais restrições a direitos fundamentais veiculadas por atos reguladores devem estar ancoradas em prévia autorização constitucional e/ou legislativa. Qualquer outra possibilidade estará fatalmente eivada do vício da inconstitucionalidade.

Mas, como já adiantado e de notório conhecimento (embora por vezes alvo de curioso esquecimento), o atendimento às exigências da reserva legal e a delegação de poderes normativos a entes não legislativos não autoriza a conclusão de uma automática constitucionalidade formal e substancial dos respectivos atos, sejam eles normativos, trata-se de atos concretos, porquanto é certo que nem a lei e muito menos um ato normativo infralegal poderão violar os reclamos da segurança jurídica, do teste de proporcionalidade e – ainda que superadas tais barreiras – afetar o núcleo essencial dos direitos fundamentais alcançados pela intervenção restritiva.

À vista do exposto, para encerrar, calha enfatizar dois pontos, quais sejam, o de que o necessário poder regulatório não pode se submeter à lógica de um certo tipo de “maquiavelismo jurídico”, no sentido de que a nobreza dos fins justifique o recurso a todo e qualquer meio, mas também o fato de que o indispensável papel da regulação não venha a corroer a essência dos princípios do Estado Democrático de Direito e a proteção dos direitos fundamentais, por conta da formação de entes dotados de superpoderes regulatórios.

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