Academia e empresas de tecnologia defendem constitucionalidade do artigo 19, mostra pesquisa

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Empresas de tecnologia e academia, grupos historicamente opostos em questões digitais, convergem em apoio à constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Essa é uma das principais conclusões de um estudo conduzido pelo Reglab, think tank especializado em mídia e tecnologia, que analisou 87 documentos públicos do processo do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. 

A Corte vai começar a julgar a ação nesta quarta-feira (25/11). O artigo 19 estabelece que as plataformas digitais não têm responsabilidade automática pelo conteúdo publicado por seus usuários. Elas só podem ser responsabilizadas caso não cumpram uma ordem judicial que determine a remoção do material. Há, no entanto, exceções para situações envolvendo violação de direitos autorais e divulgação não autorizada de imagens íntimas, em que as plataformas são obrigadas a remover o conteúdo imediatamente após serem notificadas pelas vítimas, sem necessidade de intervenção judicial.

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Segundo a pesquisa, 48% das manifestações coletadas defenderam a manutenção do artigo, argumentando que ele equilibra a liberdade de expressão e responsabilidade das plataformas. O apoio veio de setores diversos, incluindo organizações que tradicionalmente divergem das grandes empresas de tecnologia, como algumas ONGs e instituições acadêmicas. A academia frequentemente adota posições críticas às big techs, especialmente em questões relacionadas à privacidade e regulação de mercado. Entidades da sociedade civil e academia representaram 50% da amostra, com mais da metade desses se manifestando a favor da constitucionalidade (59%). 

“O estudo identifica que essas partes historicamente opostas em discussões sobre regulação digital, como questões de privacidade e poder econômico, reconheceram conjuntamente a importância do artigo para proteger a liberdade de expressão e garantir segurança jurídica no ambiente digital​”, diz o estudo. 

A análise indica que os argumentos favoráveis à constitucionalidade “apresentaram uma variedade argumentativa maior que outras posições. Embora essa multiplicidade também possa refletir a necessidade de uma defesa mais robusta, isso também pode sugerir que o art. 19 possui um caráter mais estruturante, adaptável e democrático”. 

Entre os argumentos mais citados pelos grupos que apoiam a constitucionalidade, estão a preservação da liberdade de expressão e o estímulo à inovação tecnológica. Para empresas, como afirmou a Meta em sua manifestação, o artigo reduz riscos jurídicos e mantém custos operacionais previsíveis. Já a sociedade civil e a academia destacam que o modelo atual protege direitos fundamentais e previne a censura prévia.

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“Não é correto afirmar que o artigo 19 serve como escudo para provedores evitarem remoções de conteúdos ilegais. Ele apenas estabelece regras para garantir a proporcionalidade e evitar a censura prévia”, afirmou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) em manifestação. Para defensores da constitucionalidade, a decisão judicial como pré-requisito para a remoção de conteúdos é apontada como um mecanismo que respeita o devido processo legal e garante a liberdade de expressão. 

Do lado da academia, um exemplo é a manifestação do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Fundação Getúlio Vargas (CEPI/FGV), que defende que “a opção legislativa pela adoção do regime de responsabilidade civil de provedores de aplicação hoje em vigor não foi feita, tampouco, de modo unilateral ou arbitrário: como o restante dos dispositivos do Marco Civil da Internet, as regras referentes à responsabilização civil de provedores de aplicação foram sujeitadas a um intenso e multilateral debate público.”

Em contrapartida, as críticas ao artigo, verificadas em 25% das manifestações, argumentam que ele seria ineficaz contra conteúdos nocivos e geraria lentidão judicial. Outra parcela ainda sugeriu interpretações alternativas para ajustar a aplicação da norma a situações específicas, como discurso de ódio ou desinformação.

Interpretação conforme

No estudo do Reglab, que foi encomendado pelo Google, mas feito e interpretado de maneira independente, foi identificado um aumento significativo das manifestações em favor da interpretação conforme do artigo 19 do Marco Civil da Internet nos últimos dois anos. Esse posicionamento, embora minoritário no início do debate, ganhou força especialmente após 2023, coincidindo com um momento de maior atenção ao tema, e tomou 25% das manifestações analisadas.

A interpretação conforme é uma estratégia jurídica que busca adaptar o texto de uma lei para que ele esteja em harmonia com a Constituição, sem necessariamente invalidá-la. No caso do artigo 19, algumas entidades propõem ajustes interpretativos que ampliem a responsabilidade das plataformas digitais em situações específicas, como discurso de ódio ou desinformação eleitoral, sem exigir uma reformulação total do artigo.

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Segundo o estudo, o crescimento desse posicionamento está ligado a fatores como o aumento da desinformação online e os ataques de 8 de janeiro de 2023, que impulsionaram debates sobre a necessidade de maior controle e responsabilização das plataformas digitais, e o maior engajamento do Executivo no tema. O governo brasileiro, em manifestações na audiência pública de março de 2023, alinhou-se fortemente com a interpretação conforme, propondo uma abordagem intermediária que preserva a constitucionalidade, mas amplia obrigações em casos específicos.

No entanto, o Reglab aponta desafios para essa abordagem. “A maior parte dos argumentos apresentados não apresenta critérios objetivos ou análise de consequências, podendo comprometer a segurança jurídica se adotadas sem a devida cautela”, diz o estudo. Para o Reglab, o caminho seria manter o modelo atual, ajustando pontos críticos.

“O modelo do artigo 19 deve ser preservado, mas ajustado para contemplar novos desafios regulatórios sem comprometer os princípios que fundamentam sua estrutura atual, como a liberdade de expressão e a inovação tecnológica. É necessário cautela para não criar excessiva vigilância ou sobrecarga administrativa para as plataformas, o que poderia impactar negativamente o ecossistema digital”, diz o estudo.

Contrários à constitucionalidade

Os argumentos contrários à constitucionalidade, segundo o estudo, podem ser agrupados em três principais frentes. O primeiro deles é o que gira em torno da ineficácia para conter abusos e conteúdos nocivos. Segundo uma crítica do Ministério Público de São Paulo (MPSP), o artigo 19 posterga “a retirada de conteúdos prejudiciais, permitindo que conteúdos criminosos permaneçam disponíveis enquanto uma decisão judicial é aguardada”, o que configuraria um incentivo à proliferação de publicações nocivas.

Outros críticos também afirmam que o artigo prioriza excessivamente a liberdade de expressão, deixando de lado outros direitos fundamentais, como a proteção à dignidade humana. Além disso, para esses grupos, o artigo 19 não prevê de forma robusta a proteção de crianças, adolescentes e grupos marginalizados contra conteúdos abusivos e prejudiciais.

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“As plataformas digitais devem garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, conforme prevê a Constituição. O modelo atual do artigo 19 é insuficiente para assegurar esse dever de cuidado”​, segundo o Instituto Alana, uma organização da sociedade civil voltada para a infância. 

O julgamento

A decisão do STF, a partir do julgamento que se inicia na quarta-feira (27/11), pode ter repercussões significativas tanto para as plataformas quanto para usuários de redes sociais. Para as empresas, uma eventual mudança na interpretação do artigo 19 pode aumentar a responsabilidade sobre os conteúdos publicados por terceiros, exigindo maior vigilância, possíveis alterações em suas políticas de moderação e maior cuidado para os riscos jurídicos envolvendo o tema. Para os internautas, pode significar novas formas de moderação de conteúdos. 

O entendimento do STF sobre o artigo 19 valerá para tribunais de todas as instâncias sobre redes sociais e também para outras plataformas da internet. O tema vai a plenário depois que os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Edson Fachin, relatores de três ações que tratam sobre Marco Civil da Internet e plataformas digitais, encaminharam os processos para julgamento. 

Em outubro, o decano da Corte, Gilmar Mendes, disse que o embate entre o Supremo e o empresário Elon Musk, dono do X, que culminou no bloqueio da rede no Brasil, mostrou necessidade de regras para plataformas.  “Nós vimos o episódio com o dono do Telegram na França. Nós temos visto os embates com Elon Musk na Austrália e em outros países. Portanto, não é uma singularidade brasileira, não se trata de uma inventividade do Supremo Tribunal Federal”, disse.

Os processos são: Recurso Extraordinário (RE) 1037396 (Tema 987 da repercussão geral), Recursos Extraordinários (RE) 1057258 (Tema 533 da repercussão geral) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403. 

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