Multas de valores incompatíveis com as obrigações

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As astreintes são originárias do direito francês e são definidas por Rizzo Amaral como “técnica de tutela coercitiva e acessória, que visa a pressionar o réu para que ele cumpra mandamento judicial, pressão esta exercida através de ameaça a seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento” (AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 85).

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De forma objetiva, a finalidade das astreintes é obrigar a parte a cumprir uma obrigação de fazer ou de não fazer sob pena de pagar multa pecuniária.

A sua incidência costuma ocorrer quando o réu descumpre ou demora a cumprir a obrigação que lhe foi determinada, o que pode se dar por inúmeras razões, como (i) o fato de o cumprimento não depender exclusivamente da vontade e esforços dele, precisando de um terceiro; (ii) o cumprimento poder ser realizado tanto pelo réu quanto pela parte autora individualmente, e ela não o fez; e (iii) de forma mais simples, quando o réu escolhe descumprir a determinação judicial.

Com relação à última hipótese, nos casos em que o réu, único capaz de cumprir a obrigação de fazer ou não fazer imposta, decide, deliberadamente, retardar o cumprimento da obrigação ou até mesmo deixar de cumpri-la, é inegável a pertinência da fixação e posterior majoração das astreintes como forma de pressionar a parte recalcitrante a cumprir com a ordem imposta pelo Judiciário.

Há hipóteses, todavia, como aquelas duas primeiras acima mencionadas, em que o Judiciário muitas vezes não se atenta para o fato de que a obrigação fixada pode ser cumprida por um terceiro, o que seria, em muitos casos, muito mais rápido e prático, e comumente eleva as astreintes a valores astronômicos e incompatíveis com a obrigação que deveria ter sido cumprida. É sobre esses casos que se volta a preocupação deste breve arrazoado.

De forma mais concreta, tome-se o comum exemplo de uma parte que foi obrigada, por força de uma decisão judicial, a cumprir uma obrigação de fazer relativa à transferência de propriedade de uma motocicleta avaliada em R$ 3.000,00 para o nome da parte adversa, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00, e, passado um ano, a obrigação continua sem cumprimento.

Para além da evidente ineficiência na fixação das astreintes, já que o objetivo perseguido não foi alcançado, o descumprimento da obrigação muitas vezes gera na parte beneficiária a euforia de ver, a cada dia que passa, o aumento do valor das astreintes, de modo que ela acaba optando por permanecer inerte e torcendo para que o descumprimento se perpetue pelo maior tempo possível com o interesse de perceber, futuramente, as exorbitantes astreintes. Nesse hipotético caso, é de notar-se que a soma da multa já alcançaria o astronômico valor de R$ 365.000,00.

Com isso em mente, e para evitar situações como essa exposta acima, cada vez mais os magistrados, de forma ponderada e acertada, estão optando, por exemplo, pela expedição de ofícios diretamente aos órgãos competentes, o que é muito mais eficiente, tendo em vista que órgãos como o Detran têm uma disposição de cumprir decisões judiciais muito mais rapidamente do que atender um simples requerimento particular.

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Tal orientação foi observada, ilustrativamente, no acórdão proferido pelo TJGO no agravo de instrumento de nº 5500917-50.2020.8.09.0000, em que se concluiu que todo o problema seria facilmente resolvido com uma simples expedição de ofício ao Detran/GO. Naquela ocasião, julgou-se prejudicada a nova multa diária de R$ 1.000,00 que estava sendo imposta por anos pelo magistrado de 1º Grau e que apenas elevaria a dívida sem alcançar a medida originariamente pretendida, que foi finalmente obtida mediante o envio de simples ofício pela secretaria do Juízo competente. Confira-se a ementa do julgado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO COM DADOS EQUIVOCADOS DO CLIENTE. CADASTRAMENTO INCORRETO JUNTO AO DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO. NECESSIDADE DE PACIFICAÇÃO SOCIAL. RETIFICAÇÃO. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO PARA SOLUÇÃO DA PERLENGA. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. PREJUDICIALIDADE. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. 1. Considerando o princípio da efetividade do processo, não pode o julgador se prender ao formalismo exacerbado, devendo sempre prevalecer o interesse em solucionar o litígio, em busca do objetivo maior do Estado, qual seja, a pacificação social através da justa composição do litígio. 2. Com o intuito de assegurar a efetividade da tutela jurisdicional, bem como impedir maior lesividade às partes, reputo salutar determinar a expedição de ofício à autarquia estadual competente, para que providencie a retificação da documentação da motocicleta adquirida pelo autor/agravado, que, inclusive, já se encontra emplacada e em circulação. 3. A decisão que comina multa diária não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada, ficando prejudicado o arbitramento, com a solução adotada. 4. Não merece ser conhecido o pedido de condenação da parte contrária por litigância de má-fé, quando formulado em sede de contrarrazões, ante a inadequação da via eleita, nos termos da Súmula nº 27 deste egrégio Sodalício. 5. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. Acorda o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, pela Quarta Turma Julgadora de sua Quarta Câmara Cível, à unanimidade de votos, em CONHECER DO AGRAVO DE INSTRUMENTO E PARCIALMENTE PROVÊ-LO, tudo nos termos do voto do Relator. (TJ-GO – Agravo de Instrumento 5500917-50.2020.8.09.0000 – Rel. Des. Fabiano Abel de Aragão Fernandes – DJe: 23.08.21)

A decisão acima referida, que, em apertada síntese, cortou o longo caminho do pedido administrativo do réu junto aos órgãos públicos, é exemplo de que a ordem direta para os órgãos cumprirem com a obrigação de retificação dos dados foi infinitamente mais eficiente do que passar anos a fio e impor multas milionárias para que o réu consiga promover essa simples medida, independentemente de ele ter sido relapso e recalcitrante ou não. O objetivo precisa continuar sendo alcançar a medida pretendida, e não continuar majorando astreintes até que se tornem um fim em si mesmas.

A propósito, por ocasião do recente julgamento do Recurso Especial nº 1.840.280/BA, o STJ estabeleceu alguns critérios a serem observados para a redução de astreintes vencidas. Na hipótese, reconheceu-se que um dos requisitos para ser admitida a redução é “que a parte beneficiária da tutela específica não tenha buscado mitigar o seu próprio prejuízo”, o que se relaciona exatamente com o que se aqui se problematiza e reforça a adesão do Judiciário brasileiro ao princípio do “duty to mitigate the loss”, que é mais uma vertente do princípio da boa-fé objetiva.

É preciso, portanto, que o Judiciário esteja atento aos conformismos das partes beneficiárias quanto ao descumprimento das ordens judiciais pelas partes prejudicadas, já que tal circunstância acaba sendo preferível em razão dos exorbitantes valores que as multas alcançam.

Além de subverter a lógica do processo e violar a cooperação processual agora positivada pelo art. 6º, do Código de Processo Civil, essa conduta omissiva da parte beneficiária em nada contribui para que se obtenha a tutela especificamente perseguida por ela própria e, além disso, a multa passa a ser um fim em si mesmo, o que é em tudo incompatível com sua natureza.

Aqui, pois, se reforçam duas alternativas concretas para evitar o enriquecimento sem causa decorrente de astreintes desproporcionais e para assegurar a eficiência na execução das obrigações de fazer ou não fazer. A primeira é uma maior atenção do Judiciário na escolha dos meios para efetivar a tutela pretendida. Sempre que possível, o magistrado deve recorrer a ferramentas mais diretas, como a comunicação imediata por ofícios com órgãos e terceiros que possam agilizar o cumprimento da ordem judicial nos casos em que a medida final for ser implementada por uma pessoa ou instituição diferente do réu, como o caso retratado neste texto sobre troca de titularidade de um veículo ou mesmo a baixa de um gravame.

A segunda alternativa é exigir uma postura mais ativa da parte beneficiária da obrigação, em atenção ao dever de mitigação do próprio prejuízo, corolário do princípio da boa-fé objetiva. O beneficiário da decisão judicial deve ser incentivado – ou até compelido – a adotar medidas que contribuam para alcançar a finalidade do processo, e não apenas aguardar o aumento progressivo das astreintes, afinal essa procedência não só favorece a efetividade da tutela, mas também reforça o princípio da cooperação processual, assegurando que todos os envolvidos estejam efetivamente comprometidos com o cumprimento das obrigações estabelecidas.

As astreintes continuam a ser uma ferramenta útil em muitos casos para compelir o réu a promover o cumprimento da ordem judicial, mas é preciso vigilância para que elas não se tornem um mero instrumento de enriquecimento desvirtuado sua finalidade original de coercibilidade. O Judiciário, ao considerar alternativas mais práticas e diretas, e as partes, ao agirem com responsabilidade e cooperação, podem evitar o acúmulo de multas desnecessárias e focar na concretização dos direitos tutelados.

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