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Desde que vieram a público novos desdobramentos das investigações sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, rendendo mais um indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se instalou uma contenda midiática sobre os conceitos jurídicos de suspeição e impedimento.
Seria injusto condenar jornalistas pela confusão, pois são os juristas a esticarem e comprimirem os conceitos até que caibam em suas teses. “Pai, perdoa-lhes, porque sabem o que fazem!”, nos diria Karl Krauss.[1]
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Nas condições normais de temperatura e pressão, não se discutem muito as diferenças essenciais entre os institutos: a suspeição diz respeito à relação do juiz com as partes (dimensão subjetiva), enquanto o impedimento trata daquela entre o julgador e a própria causa (dimensão objetiva).
Verdade seja dita: a separação costuma ser mais didática que normativa; e é bem mais fácil visualizá-la nos arts. 144 a 148 do CPC do que nos arts. 251 a 256 do CPP. As coisas complicam um pouco quando vemos que causas de suspeição no processo penal (art. 254, inciso VI)[2] podem se transformar em causas de impedimento no processo civil (art. 144, inciso V).[3]
Porém, a polêmica estaria no debate sobre a impossibilidade de criação de fato superveniente – entenda-se: “cogitar e planejar a morte do relator” – como forma de suscitar impedimento ou suspeição. Enquanto o CPC traz vedações às duas hipóteses[4], o CPP preocupou-se apenas com alguns casos de suspeição.[5]
“O Judiciário brasileiro não é carente de juízes boquirrotos”, sentenciou Conrado Hübner Mendes há alguns anos, falando precisamente de ministros do STF.[6] Logo que, em 04/01/2024, o jornal O Globo publicou entrevista de Moraes[7] declarando que “manteve a tranquilidade” quando ficou sabendo de um plano para matá-lo, a corte recebeu uma enxurrada de arguições de impedimento dos presos do 8/1, invocando o art. 252, inciso IV, do CPP[8], sob a alegação objetiva de que uma potencial vítima não poderia ser julgadora de seus hipotéticos algozes, mesmo estando “tranquila”; se lembraram, claro, do que disse Matias Aires, nosso filósofo setecentista: “aquilo que entendemos que não nos importa, costuma levar consigo um interesse oculto por onde nos importa mais.”[9]
O ministro Barroso, competente para apreciar os pleitos[10], tem sido pródigo em soltar lacônicas – e rigorosamente idênticas – decisões de negativa de seguimento, todas com única premissa: não estaria claro o porquê de a alegada vítima ter interesse direto no feito.[11] Assim, fixando o standard probatório acima da dúvida absolutamente irrazoável, o presidente varre o debate junto com nulidades metediças.[12]
A tese de que o plano para matar o ministro seria criação de fato superveniente aposta numa credulidade pueril do público. Ora, se o plano era parte de um golpe, cuja tentativa se convencionou fixar no 8/1, é óbvio que não pode ser superveniente aos inquéritos instaurados para apurá-lo. Não preciso me amparar no meu textualismo[13], nem na jurisprudência restritiva do STF[14], para concluir que a polêmica é vazia: além de o art. 256 do CPP não se aplicar a impedimentos, a discussão já se esgotaria em mera análise cronológica dos fatos.
E se o STF fosse resolver esses problemas, seria necessário enfrentar o estado de coisas juridicamente inseguras aberto desde a nomeação sui generis do relator do Inq 4.781/DF – e tudo que seguiu dali. Porém, como a proteção de Barroso ao direito inalienável de relatoria de Moraes extrai seu modus copiandi de precedentes do ministro Dias Toffoli[15], a guinada à normalidade jurídica parece improvável.
A farsa da vida real nos lembra a de Rabelais: enquanto juristas sectários se engalfinharem como Baisecul e Humevesne[16], haverá um juiz Bridoye se escondendo atrás do vernáculo para decidir a sorte das pessoas no dado.[17] A causa de impedimento do ministro Alexandre de Moraes parece cristalina neste caso, mas ainda há juridiquês de sobra para ser gasto até alguém se atentar que aguardamos a prestação jurisdicional. Nesse dia, certamente, lembrarão o saudoso Millôr Fernandes: “A justiça tem que ser urgentemente ilegalizada”.[18]
[1] KRAUSS, Karl. Aforismos. trad. e org. Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010, p. 92.
[2] Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: (…) Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.
[3] Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: (…) V – quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica parte no processo
[4] Conforme o § 2º do art. 144 e o § 2º do art. 145, ambos do CPC.
[5] Conforme o art. 256 do CPP.
[6] A frase é abertura da coluna “Pode o juiz falar?”, publicada no jornal O Globo, em 23/08/2018, também disponível na obra: MENDES, Conrado Hübner. O discreto charme da magistocracia: vícios e disfarces do Judiciário brasileiro. São Paulo: Todavia, 2023, pp. 86-88. Também disponível em: < https://oglobo.globo.com/epoca/conrado-hubner-mendes/pode-juiz-falar-23004472 > Acesso em: 26/11/2024.
[7] “‘Um dos planos era me prender e enforcar após o golpe’, diz Moraes em entrevista um ano depois do 8/1”. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/politica/especial/um-dos-planos-era-me-prender-e-enforcar-apos-o-golpe-diz-moraes-em-entrevista-um-ano-depois-do-81-video.ghtml > Acesso em: 26/11/2024.
[8] Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: (…) IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.
[9] SILVA DE EÇA, Matias Aires Ramos da. Reflexões sobre a vaidade dos homens. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 126.
[10] Conforme os arts. 277 e 278 do RISTF.
[11] Nesse sentido, ver: AImp nº 165/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 117/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 115/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 71/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 118/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 114/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 21.2.2024; AImp nº 69/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 20.6.2024; AImp nº 170/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 30.9.2024; AImp nº 171/DF, Min. Luís Roberto Barroso, DJe 30.9.2024.
[12] Sobre isso, ver os arts. 285 e 287 do RISTF.
[13] SCALIA, Antonin Gregory. Uma questão de interpretação: os tribunais federais e o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2021, pp. 32-35.
[14] Nesse sentido, ver: RHC nº 195.982 AgR/PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 9.4.2021; HC nº 92.893/ES, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJ 12.12.2008; HC nº 112.121/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 2.3.2015.
[15] Ver o AImp nº 57/SP, Min. Dias Toffoli, DJe 30.3.2020.
[16] Atento ao pudor e à liturgia afetos aos veículos de mídia jurídica, julguei preferível apelar ao original francês preservado pelas edições brasileiras mais antigas, mas não deixo de elogiar aqui a tradução recente de Guilherme Gontijo Flores. Para conferir a edição usada para este texto, ver: RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009, pp. 282-296.
[17] RABELAIS, op. cit., pp. 523-540.
[18] FERNANDES, Millôr. A bíblia do caos. 17. ed. Porto Alegre: L&PM, 2023, p. 271.