No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Novas fronteiras do direito à assistência médica para morte

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No Brasil, este ainda é um debate interditado. No entanto, na Europa e na América do Norte um dos temas mais controversos no campo do direito internacional comparado da saúde versa sobre como regular adequadamente o direito à assistência médica para a morte digna (Medical Assistance in Dying – MAiD, em inglês, acrônimo que utilizarei aqui para referir a prática).

O termo MAiD vem sendo utilizado para referir modalidades diferentes de assistência médica para a morte, tais como a assistência ao suicídio e de eutanásia. A recente morte assistida do poeta brasileiro e membro da Acadêmica Brasileira de Letras (ABL) Antonio Cícero, na Suíça, trouxe o debate à tona no Brasil e explicitou o atraso do país no que se refere ao atual estágio de regulação e discussões sobre a proteção do direito de morrer dignamente.

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A maioria dos países que legalizaram a assistência médica para a morte delimitaram este tipo de prática para pessoas em estado terminal de doenças e/ou para pessoas que estão perto de morrer de morte natural. Alguns poucos países fornecem acesso mais amplo para a MAiD, incluindo casos de doenças mentais, como por exemplo Bélgica e Holanda. Nestes países, o crescimento da prática de “eutanásia psiquiátrica” ​​nos últimos cinco anos fez crescer controvérsias relevantes sobre a sua aplicação e uso.

Há um debate internacional intenso sobre qual seria o modelo mais digno e adequado de ser utilizado para a MaiD em Estados democráticos que respeitam os direitos humanos fundamentais. Alguns bioeticistas e estudiosos do direito da saúde argumentam que o modelo mais amplo, que inclui doenças mentais dentre aquelas cobertas pela possibilidade de MAiD, seria o mais adequado para uma plena proteção da dignidade humana e do direito de morrer dignamente.

Os argumentos em defesa desta abordagem mais abrangente giram em torno de casos paradigmáticos de pacientes com “depressão resistente ao tratamento” (DRT), para os quais não haveria mais esperança de recuperação. Não fornecer acesso a pessoas com DRT, para esta corrente de teóricos, seria discriminatório e forçaria as pessoas a sofrerem indefinidamente ou a cometerem suicídio em circunstâncias indignas e cruéis.

Um dos principais pesquisadores canadenses da área, Trudo Lemmens, da Universidade de Toronto, fez uma interessante análise crítica sobre a forma como este debate vem sendo tratado, partindo de um texto referência elaborado por Thomas Blikshavn, Tonje Lossius Husum e Morten Magelssen acerca da expansão da morte assistida para pessoas com doenças mentais. Os autores discutem principalmente sobre a adequação do uso da MAiD para casos de pacientes com doenças mentais reversíveis, como a depressão por exemplo.

Embora já haja um consenso sobre o direito à morte assistida em casos de doenças degenerativas e/ou doenças terminais sem chances de reversão, como Alzheimer e outras doenças autoimunes, uma nova fronteira para uso do MAiD está provocando intensos debates sobre sua adequação. Trata-se do uso do MAiD para doenças mentais, entre elas depressão.

Os autores referidos são bastante reticentes quanto ao uso deste direito para doenças mentais, e, em síntese, apresentam quatro razões pelas quais a morte assistida não deve ser oferecida para a depressão (embora os argumentos se concentrem em DRT, muitos de seus pontos são relevantes para o contexto mais amplo da saúde mental).

O argumento central dos defensores da aplicação da medida é o de que é razoável permitir MAiD para depressão quando não há “esperança realista de recuperação”. É sobre esse argumento que os autores desenvolvem quatro pontos para reflexão: um ponto de política mais amplo, sobre o impacto nos serviços de saúde mental; e três pontos relacionados ao impacto da introdução de MAiD na prática clínica no contexto excepcionalmente difícil da doença mental.

Primeiro, eles criticam como o conceito de “depressão resistente ao tratamento” dá uma falsa aura de “objetividade” e rigor científico ao argumento para expansão da MAiD para doenças mentais. DRT é um termo técnico que indica uma falta de resposta sintomática a alguns cursos de tratamento psicofarmacológico. Isso não significa que não haja outras opções de tratamento.

Qualquer pessoa familiarizada com as evidências fracas que sustentam alguns dos antidepressivos mais amplamente promovidos deve estar extremamente preocupada com o argumento de que a falha em responder a três (ou até mais) desses tratamentos deve constituir uma base confiável para concordar em acabar com a vida de um paciente. Os autores apontam para a ironia de que, na terapia cognitivo-comportamental, a crença de que nada ajudará é tratada como um sintoma, e a modificação dessa crença é um “objetivo terapêutico crucial”. É preciso se perguntar que tipo de terapia nos permitirá lidar com essa crença em um nível social mais amplo.

O segundo ponto se relaciona ao mal-entendido fundamental do que significam os diagnósticos psiquiátricos. Fora da psiquiatria, os processos fisiopatológicos geralmente explicam doenças e permitem que os profissionais de saúde deem algum prognóstico razoável (mesmo que a incerteza permaneça). Em contraste, os diagnósticos psiquiátricos são generalizações amplas baseadas em alguns traços comportamentais compartilhados; o poder explicativo dos diagnósticos e o valor da predição diagnóstica permanecem muito limitados.

Os autores argumentam que, estatisticamente, uma porcentagem de pacientes com depressão não se recupera. No entanto, alegam, não se pode saber com antecedência quem se enquadrará nessa categoria. Além disso, os autores ilustram poderosamente como as relações interpessoais entre terapeutas e pacientes, bem como o envolvimento emocional dos pacientes com sua terapia, impactam fortemente os resultados do tratamento.

Mais do que em outros contextos de tratamento, as expectativas dos pacientes e as atitudes dos terapeutas interagem com as intervenções terapêuticas e tornam o sucesso do tratamento dependente do contexto.

Em outras palavras, enquanto legisladores, filósofos e advogados podem utilizar e “construir” o TRD como um “critério de acesso objetivo e mensurável”, a realidade clínica revela que isso é ilusório. Além disso, alegam, oferecer a escolha do MAiD para casos de depressão afeta, por si mesmo, o provável resultado da intervenção de assistência médica.

O terceiro ponto trazido pelos autores está relacionado com o significado terapêutico da esperança. A esperança é cada vez mais reconhecida como um importante contribuinte para todos os resultados de cuidados de saúde, mas isso é particularmente verdadeiro em cuidados de saúde mental. É essencial que os prestadores de cuidados de saúde transmitam esperança aos pacientes cuja doença os fez perder a esperança e ansiar pela morte.

Quando os terapeutas confirmam as razões (percebidas) dos pacientes para a desesperança, a aliança terapêutica, um contribuinte essencial para um bom resultado do tratamento, é destruída. Dar aos terapeutas a tarefa de avaliar a “estabilidade” do desejo de morrer cria, portanto, uma profecia autorrealizável: quando os psiquiatras concluem que a esperança de recuperação é fútil, a ferramenta mais crucial para combater a perda de esperança do paciente (ou seja, apoio contínuo e a esperança persistente do terapeuta) desaparece.

O quarto e último ponto trazido pelos autores analisa o impacto mais amplo que uma normalização do uso da MAiD nos cuidados de saúde mental poderia trazer. A preocupação é que a normalização da prática do MAiD para diagnósticos psiquiátricos pode minar a resiliência que os terapeutas atualmente desenvolvem contra seu próprio desespero quando confrontados com seus pacientes mais desesperados.

Pedir aos terapeutas para oscilar entre transmitir esperança e desistir da esperança em alguns casos irá minar a aliança terapêutica, que é crucial para um bom cuidado de saúde mental. Além disso, a institucionalização da morte assistida irá minar a capacidade dos pacientes de desenvolver uma habilidade de lidar e aceitar algum nível de sofrimento, o que é cada vez mais visto como um componente crucial de abordagens promissoras de terapia comportamental para doenças mentais.

Trudo Lemmens, analisando o texto dos autores, traz elementos empíricos importantes para ilustrar o debate que está acontecendo no campo do direito internacional comparado acerca da MAiD. Destaca, nesse sentido, o aumento na demanda por eutanásia por pacientes psiquiátricos na Holanda, conforme relatado na Terceira Avaliação da lei holandesa de eutanásia.

Embora a prática em si permaneça limitada para casos de DRT (83 de um total de 6.535 casos de eutanásia relatados em 2017), 1.100 pacientes psiquiátricos a solicitaram em 2015, ante 300 em 1995. Esse enorme aumento na demanda revelaria precisamente o tipo de impacto mais amplo na relação terapêutica que os autores descrevem apropriadamente.

Lemmens também argumenta que o aumento na demanda também coincide com um aumento em sua prática, com médicos especializados em fim de vida se sentindo cada vez mais confortáveis ​​em fornecer acesso ao MAiD para doenças mentais. Como os autores concluem: “Um desejo de morrer não surge em um vácuo ideológico”; “a própria disponibilidade da morte assistida pode levar alguns pacientes deprimidos a desistir da esperança que é tão vital para o progresso terapêutico”.

No Brasil, não há no horizonte sequer a agenda de regular o MAiD para os casos mais dramáticos e evidentes, como o que afetou Antonio Cícero e o obrigou a ir morrer na Suíça. Até quando permaneceremos tão atrasados para aprovar leis que protejam o direito do ser humano de morrer dignamente?


Trudo Lemmens, Medical Assistance in Dying Laws and the Therapeutic Relevance of Hope in the Mental Health Context, JOTWELL (May 28, 2018)

Thomas Blikshavn, Tonje Lossius Husum, and Morten Magelssen, Four Reasons Why Assisted Dying Should Not Be Offered for Depression,14 J. of Bioeth. Inq. 151-157 (2017).

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