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Constitucionalidade, ou não, da redução da reinjeção de gás natural

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Foi a necessidade de redução dos volumes de reinjeção de gás natural no processo de produção de petróleo que motivou a edição do Decreto 12.153, de 2024. É que, segundo a própria Exposição de Motivos, em alguns campos da área do pré-sal, foram observados níveis de reinjeção superiores a 80% do volume do gás produzido, gás este que tem feito falta ao mercado consumidor.

Para enfrentar esse problema, o Decreto 12.153/2024 previu a possibilidade de a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), por exemplo, determinar, em casos de viabilidade técnico-econômica, a redução da reinjeção de gás natural ao mínimo necessário, o aumento da produção de gás natural, a adequação de infraestruturas à ampliação da produção de gás natural prevista e a revisão dos planos de desenvolvimento. Tudo isso para assegurar oferta suficiente de gás natural ao mercado e consequente redução de preços.

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Não obstante a legitimidade de tais objetivos, o Decreto 12.153/2024 tem sofrido questionamentos quanto à sua legalidade e constitucionalidade, supostamente por cercear a livre iniciativa dos particulares que executam, em nome da União, as atividades relacionadas no art. 177 da Constituição.

Mas será que o decreto é realmente inconstitucional? Será que ele, de fato, afronta a nossa Constituição e a legislação infraconstitucional? Para responder essa e outras indagações, mister se faz rememorar o tratamento que a Constituição Federal de 1988 dispensa ao tema.

Nesse passo, convém lembrar que a CF/88 fez uma clara distinção entre a propriedade da União sobre os recursos minerais, inclusive os do subsolo e sobre os recursos naturais da plataforma continental e da Zona Econômica Exclusiva, no art. 20, e o monopólio da União sobre exploração ou o aproveitamento econômico desses bens públicos no art. 177.

Portanto, apesar de a CF/88, haver consagrado a livre iniciativa como um dos fundamentos da Ordem Econômica Constitucional e a livre concorrência como um de seus princípios, atribuiu à União, no art. 177, o monopólio das seguintes atividades:

I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;

II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;

III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;

IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem (…)

Como se sabe, o monopólio é a estrutura de mercado em que um único agente econômico fornece a todo o mercado um bem ou serviço que não possui substituto próximo, ou seja, pressupõe a atuação exclusiva de um único agente. Com exceção dos monopólios decorrentes práticas anticompetitivas, o monopólio pode ser natural, legal ou decorrente de uma maior vantagem competitiva do agente em relação a seus concorrentes. O monopólio legal, por sua vez, pode ser público ou privado, quando, respectivamente for atribuído ao Estado ou a um agente privado, como no caso da propriedade industrial.

Ao prever o monopólio legal, a própria Constituição estabeleceu uma exceção aos princípios gerais da atividade econômica da livre iniciativa e da livre concorrência, erigindo barreiras legais a esses princípios.

Foi nesse sentido que decidiu o STF, na ADI 3.273-9[1], quando concluiu que:

  • o conceito de monopólio pressupõe apenas um agente apto a desenvolver as atividades econômicas a ele correspondentes;
  • “Os monopólios legais dividem-se em duas espécies: (i) os que visam o agente econômico ao investimento – a propriedade industrial, monopólio privado; e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na economia”;
  • a CF/88 distinguiu a propriedade da União sobre as jazidas de petróleo e gás natural da atividade de exploração econômica dessas jazidas (as quais foram inseridas no monopólio da União);
  • a propriedade não constitui um instituto único, em virtude de sua abrangência variar conforme o objeto da propriedade e o regime jurídico aplicável;
  • diferentemente da propriedade do minerador sobre o produto da lavra, a propriedade do concessionário sobre o óleo e gás produzido não é plena, mas relativa.

Em outros termos, a despeito de a própria CF/88, no art. 176, prever a possibilidade de a propriedade produto da lavra pertencer ao particular, no caso de produção de óleo e gás, essa propriedade não é plena, não tendo o seu titular livre disposição sobre esses bens.

Além de não ser plena, deve a propriedade sobre o óleo gás produzido atender à sua função social, por força de o princípio da função social da propriedade figurar tanto como um dos princípios da Ordem Econômica Constitucional no art. 170, inciso III, como também como um direito fundamental no art. 5º, inciso XXIII.

Ainda no tocante ao tratamento constitucional do tema, vale lembrar que a Emenda Constitucional 9/1995, conquanto tenha mantido intacto o monopólio da União sobre as atividades do art. 177, trouxe novas possibilidade de execução desse monopólio até então limitada à Petrobras.

Com esta emenda, a Constituição passou a prever que a União poderá contratar empresas estatais ou privadas para realizarem as atividades previstas nos incisos I a IV do art. 177. Ora, se a União pode contratar, ela também pode não contratar, restando claro que continua presente, na Constituição, a possibilidade de exercício direto do monopólio pela União.

Como União pode retirar completamente a atividade do domínio privado – absorvendo totalmente o exercício desta atividade econômica – pode também criar regras mais assimétricas de atuação da iniciativa privada, condicionando-a ao interesse público, sem que isso possa configurar qualquer violação à livre iniciativa, pois tais atividades não se desenvolvem num ambiente de livre iniciativa, mas de monopólio legal.

Foi com base nessa leitura constitucional, inclusive sobre as Leis 9.478/97 e 14.134/21 entre outras, que foi construído o Decreto 12.153/2024, editado considerando a possibilidade de se condicionar o exercício do monopólio da União à efetivação de diversos interesses públicos, como: a garantia do abastecimento nacional (prevista no § 2º do art. 177, da CF/88), a preservação do interesse nacional, a valorização dos recursos energéticos, a proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos, e o incremento, em bases econômicas, da utilização do gás natural. Tais interesses constituem, inclusive, conforme art. 1º da Lei 9.478/97, objetivos das políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia.

Em relação à Lei 9.478/97, cumpre lembrar que ela estabelece como um dos objetivos da política energética nacional a proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos e atribui à ANP a competência de implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados, e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos.

Dito isso, percebe-se que o art. 5º-C do decreto apenas esmiúça as competências que Lei 9.478/97 já atribuiu à ANP. Assim sendo, quando este dispositivo explicita a competência de a ANP, por exemplo, determinar a redução da reinjeção de gás natural ao mínimo necessário, o aumento da produção de gás natural, a adequação de infraestruturas à ampliação da produção de gás natural e a revisão dos planos de desenvolvimento, não está inovando no ordenamento jurídico, mas apenas condicionando a exploração econômica de bens da União ao atendimento de interesses públicos.

Em relação à incidência da regulação da ANP sobre os contratos em curso, tal decorre do entendimento de que as normas regulatórias compatíveis com os contratos assinados e com a legislação setorial se incorporam aos contratos e passam a ser obrigatórias para o Concessionário/Contratado[2].

E, a despeito do exercício das atividades de que trata o art. 177, da CF/88 não consistir em serviço público, encontra-se sujeito a certas potestades públicas[3], como aliás é comum nos contratos petrolíferos e nas atividades e instrumentos vinculados ao interesse público.

É que, até mesmo nos contratos de exploração e produção de petróleo e gás natural, não há igualdade entre o Contratante/Concedente e o Contratado/Concessionário, o qual se encontra sujeito ao poder de a ANP editar regras gerais e abstratas,  autorizar o exercício de atividades, fiscalizar e sancionar a atuação dos agentes regulados, extinguir o contrato unilateralmente, além de decidir conflitos entre agentes, elaborar os editais e contratos, sobre os quais a agência também tem o poder de interpretar e integrar[4].

Ainda com relação à aplicabilidade imediata das normas regulatórias, convém ressaltar que o art. 44, da Lei 9.478/97 preceitua ainda que “o contrato estabelecerá que o concessionário estará obrigado a: “VI – adotar as melhores práticas da indústria internacional do petróleo e obedecer às normas e procedimentos técnicos e científicos pertinentes, inclusive quanto às técnicas apropriadas de recuperação, objetivando a racionalização da produção e o controle do declínio das reservas”.

Em face de tal preceito, o Concessionário/Contratado se encontra obrigado a cumprir as melhores práticas da indústria do petróleo, mesmo elas variando ao longo da vida contrato, ou seja, o Concessionário/Contratado, quando, da sua assinatura, implicitamente concorda com a incorporação ao contrato de normas regulatórias que estabeleçam melhores práticas.

É que a própria definição de melhores práticas, na cláusula 1.2.23 do contrato de concessão do 4º Ciclo da Oferta Permanente da Concessão, prevê que, para a sua execução, ”os Concessionários devem tomar as normas expedidas pela ANP e pelos demais órgãos públicos brasileiros como ponto de partida, incorporando padrões técnicos e recomendações de organismos e associações da Indústria do Petróleo reconhecidos internacionalmente, sempre que tais medidas aumentem as chances de que os objetivos listados acima sejam alcançados”.[5]

Verifica-se ainda a possibilidade de determinações da ANP de redução da reinjeção de gás natural ou de aumento da produção se enquadrarem no conceito de melhores práticas, por almejarem a maximização da recuperação de óleo e gás (não apenas de óleo) e a minimização de consumo de recursos naturais nas operações de E&P, contribuindo, dessa forma, para um aproveitamento racional e adequado das fontes energéticas que pertencem à União.

Portanto, respondendo à pergunta inicial quanto à inconstitucionalidade e ilegalidade do Decreto 12.153, de 2024, sustenta-se justamente o contrário: ele se encontra em total harmonia com os preceitos constitucionais e legais que regem a matéria, na medida em que ele apenas condiciona o aproveitamento e a disposição do gás natural produzido a um plexo de interesses públicos, como determina a nossa Constituição.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.273-9. Relator para o acórdão: Ministro Eros Grau. Julgamento em 16 mar. 2005. Plenário. Diário da Justiça, 2 mar. 2007. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=408864. Acesso em: 25 nov. 2024.

[2] SOUTO, Marcos Juruena Viela. Direito administrativo regulatório. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.317.

[3] ARAGÃO, Alexandre. Concessões e autorizações Petrolíferas e o Poder Normativo da ANP. Revista de Direito Administrativo[S. l.], v. 228, p. 243–272, 2002. DOI: 10.12660/rda.v228.2002.46670. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/46670. Acesso em: 25 nov. 2024, p. 251-253.

[4] Idem, ibidem, p. 255-256.

[5] AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS (ANP). Contrato de Concessão do 4º Ciclo da Oferta Permanente da Concessão. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/oferta-permanente/opc/arquivos/edital/modelo-contrato-blocos.pdf. Acesso em: 25 nov. 2024.

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