No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Regulação em rede: unindo jurisdições e saberes na era das plataformas digitais

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Em 10 de outubro de 2024, a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda publicou seu relatório intitulado “Plataformas digitais: aspectos econômicos e concorrenciais e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil”, por meio do qual buscou apresentar propostas relevantes de aprimoramento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, no que diz respeito aos mercados de plataformas digitais.

A preocupação com as dinâmicas dos mercados digitais são anteriores ao relatório, e tem sido enfrentada pela autoridade concorrencial brasileira (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade), e por outras jurisdições, há alguns anos.

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As particularidades associadas às plataformas digitais e as novas formas de configurações de poder de mercado envolvendo conjuntos de atores dentro do que se convencionou chamar de ecossistemas digitais – como os efeitos de rede, os mercados de múltiplos lados e a captação intensa de dados estratégicos de terceiros –, exigem novas perspectivas para a identificação e análise de práticas (potencialmente) anticompetitivas nesses mercados.

Significativas investigações antitruste em mercados digitais estão em andamento, envolvendo grandes players nesses mercados, como iFood, Meta, Mercado Livre e até a Google. A maior frequência de publicações institucionais pelo Cade – por exemplo, os estudos realizados sobre “Mercados de Plataformas Digitais” de 2021 e 2023, os relatórios Brics sobre mercados digitais de 2019 e 2024, o documento de trabalho “Fusões Conglomerais: Teorias do Dano e jurisprudência do Cade entre 2012 e 2022”, e o “Guia de Análise de Atos de Concentração Não Horizontais” (ou Guia V+) publicado neste ano – destaca a atenção crescente da autoridade antitruste brasileira à agenda.

Em consonância com esse cenário, o Brasil sediou, em 22 e 23 de novembro deste ano, dois encontros internacionais relevantíssimos para incrementar os olhares sobre o debate no país.

O primeiro evento, 3rd Brics+ Digital Competition Forum, organizado pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio, pelo Brics Competition, Law & Policy Centre e pelo Cade, visou fortalecer a cooperação entre as jurisdições entre o Brics (e aspirantes a entrar no bloco, ou Brics+), ao proporcionar discussões entre diferentes autoridades antitruste, acadêmicos e sociedade civil, no que diz respeito à economia digital.

Estruturado em quatro painéis principais, o evento contou com debates sobre (i) as emergentes “teorias do dano” para plataformas digitais (ecosystem theories of harm), (ii) a digitalização das cadeias de valor alimentar e sua verticalização através da captura de dados, (iii) o aumento de atos de concentração voltados ao desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA), análise de dados e possíveis consequências concorrenciais das killer acquisitions, (iv) e a regulamentação do desenvolvimento exponencial da IA e a punição dos abusos de poder.

Os países presentes demonstraram, quase unanimemente, suas preocupações pelo não cumprimento por parte das grandes plataformas digitais das regulamentações já impostas, tornando difícil a imposição, de forma isolada, de qualquer tipo de remédio ou solução regulatória de forma eficaz.

Esse cenário destaca a importância de uma abordagem cooperativa entre as jurisdições, onde marcos regulatórios interoperáveis tornam-se essenciais para permitir a comunicação e colaboração entre os reguladores nos casos concretos. O esforço conjunto permite um enfrentamento mais eficaz das complexidades da governança digital, garantindo que as plataformas operem de forma mais transparente.

Em especial, algumas jurisdições reconheceram que a falta de um enforcement robusto por parte das suas agências, especialmente diante de grandes fusões e aquisições de plataformas digitais, pode ter gerado um real enfraquecimento do antitruste e aumento do poder de mercado das grandes plataformas para além das fronteiras do país. Assim, desponta a urgência de uma coordenação mais eficaz entre as jurisdições e de uma cooperação internacional, aliada à criação de marcos regulatórios flexíveis e interconectados.

O segundo evento, Algorithmic Dreams Meet Competition Law and Regulation: Promoting Responsible Innovation, organizado pelo Centre for Law, Economics & Society da University College London (UCL), pelo Núcleo de Estudos E-Commerce da FGV Direito Rio e pelo Inclusive Competition Forum contando com o apoio do Cade e do Ibmec, trouxe para o debate as preocupações com a “inovação sustentável” e como a regulamentação pode direcionar as revoluções tecnológicas para alcançar os valores sociais defendidos por cada jurisdição.

Ecossistemas digitais, digital health e colusões algorítmicas foram alguns dos temas abordados pelos participantes. As discussões enfatizaram a necessidade de marcos regulatórios que garantam a competição justa, mas também promovam a inclusão digital e a soberania tecnológica.

Tema crucial debatido pelos participantes foi a necessidade de atualizar o ferramental antitruste tradicional, adaptando-o aos ecossistemas digitais. Embora as particularidades desses mercados digitais já tenham sido amplamente identificadas, o enfrentamento das questões concorrenciais ainda não foi suficientemente atualizado.

O grande diferencial será, segundo diversos participantes, não criar novas metodologias “mágicas”, capazes de resolver todos as peculiaridades de uma única vez, mas tornar a análise antitruste mais flexível capaz de abarcar os complexos desafios que emergem neste contexto – como a aplicação das teorias do dano ecossistêmicas e a adoção de remédios apropriados. A flexibilidade e adaptabilidade das ferramentas antitruste são essenciais para identificar e avaliar riscos, distorções e soluções reais diante a novas dinâmicas de poder.

Dentre os remédios possivelmente aplicáveis a essas novas dinâmicas, a interoperabilidade desponta como uma solução de grande potencial para mitigar problemas concorrenciais, preservando as externalidades positivas de rede.

Em um cenário em que as plataformas digitais dominam e influenciam o comportamento dos mercados, garantir que diferentes sistemas possam interagir entre si de maneira fluida é essencial, já que favorece a continuidade dos efeitos de rede positivos, como a expansão e a inovação, reduzindo riscos de concentração excessiva de poder.

Além disso, a interoperabilidade pode ser uma alternativa mais eficaz ao tradicional desmembramento, especialmente quando o processo de integração das duas empresas ainda não for concluído. A interoperabilidade, nesse sentido, preserva a estrutura do mercado existente e pode permitir que as empresas operem de forma mais competitiva.

Em um mercado onde as redes e as plataformas são fundamentais para a inovação, a interoperabilidade desponta como solução harmoniosa para promover a concorrência sem comprometer os benefícios da economia digital.

Outro tema comum a todas as jurisdições é a regulamentação da inteligência artificial. Na China, por exemplo, em 2022, a Lei Antimonopólio foi atualizada e uma das mudanças mais significativas ocorreu no seu artigo 9º, que trata de praticas anticompetitivas em mercados digitais, embora não trate especificamente da IA. A ideia central da mudança é que, ao aplicar as regras antimonopólio, a China passa a olhar mais atento para as práticas monopolistas no uso de tecnologias emergentes, como IA e algoritmos.

A preocupação é que essas tecnologias possam ser usadas para práticas que limitam a concorrência, como o uso de algoritmos para predizer o comportamento do consumidor e criar barreiras artificiais de mercado. Em síntese, é possível afirmar que a supervisão e regulação do uso de IA estão se tornando cada vez mais um ponto de foco para as mais diversas autoridades antitruste, não só no âmbito do Brics.

A reunião de diversos especialistas reforça a indispensabilidade do envolvimento de múltiplos atores – governos, acadêmicos e a sociedade civil – na construção de um ambiente digital equilibrado. O White PaperA proposal on ex-ante regulation of Digital Ecosystems in Brazil robusteceu a discussão apontando caminhos práticos para a implementação das propostas sugeridas pelo relatório do Ministério da Fazenda.

Nesse aspecto, sobressaem-se os “princípios-chave” para governança regulatória ágil listados pela OCDE, os quais, conforme proposto pelos autores, são capazes de direcionar a concretização das proposições do relatório: a necessidade de adaptar ferramentas para manter a regulamentação atualizada, por meio de métodos flexíveis que promovam a transparência, interdisciplinaridade e o envolvimento das partes interessadas; o estabelecimento de uma base para a cooperação interinstitucional e transnacional; o desenvolvimento de estruturas de governança que permitam uma regulamentação ágil e a inovação, aproveitando dos seus benefícios ao mesmo tempo que considera as capacidades institucionais, a viabilidade de nobinding solutions, e o experimentalismo regulamentar; a criação de estratégias para promover a conformidade em diferentes jurisdições por meio de abordagens responsivas ao risco, bem como a integração do enforcement nas movimentações legislativas.

Segundo a proposta dos autores, a criação de uma Unidade de Acompanhamento de Mercado (UAM) dentro do Cade será indispensável para conduzir estudos de mercado e implementar os novos mecanismos pró-competitivos já esboçados pelo relatório, utilizando-se, assim, da prévia e vasta experiência da autarquia como autoridade antitruste do país.

A partir do nível das preocupações identificado no estudo de mercado (baixo, moderado ou alto), a UAM poderia propor remédios adequados para endereçar as preocupações competitivas, a serem validados pelo tribunal, com soluções autorregulatórias sendo aplicáveis somente para casos de preocupações moderadas e pautadas na transparência para permitir acompanhamento.

De fato, elemento crucial da proposta é a periodicidade da avaliação feita pelo órgão, que reconsideraria há cada dois anos as conclusões do estudo de mercado e a adequação dos remédios utilizados, dialogando não apenas com os sujeitos onerados, mas com a pluralidade de terceiros interessados dentro do ecossistema em análise.

A partir dessas reflexões, fica claro que o debate deve continuar evoluindo para acompanhar a velocidade e complexidade das mudanças tecnológicas e suas implicações socioeconômicas, revisitando e aprimorando o ferramental e as metodologias de análise antitruste, para abarcar a flexibilização necessária no contexto dos ecossistemas digitais.

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