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Corte IDH condena o Chile em caso que envolve processo penal contra o povo Mapuche

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou o Chile responsável pela violação de uma série de direitos a partir de um processo penal que foi iniciado contra 135 pessoas Mapuche, o povo indígena mais populoso do país. Elas integravam uma organização chamada “Conselho de todas as terras”, que reivindicava soluções à questão agrária que afeta diversas etnias no território chileno. O grupo realizou uma série de ações, entre elas protestos e ocupações pacíficas de imóveis, que acabaram criminalizadas pelo Estado chileno, ressaltou a Corte.

O caso “Huilcamán Paillama e outros vs. Chile” remonta à 1989, no contexto de transição democrática no Chile. Em dezembro daquele ano, durante a campanha presencial, o então candidato Patricio Aylwin assinou um acordo com diversas organizações indígenas no qual se comprometia a levar adiante suas demandas pelo direito à terra. Em maio de 1990, com Aylwin já no poder, foi criada a Comissão Especial de Povos Indígenas e, três anos depois, foi promulgada uma lei que estabelecia normas de proteção dos povos indígenas.

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Algumas organizações do povo Mapuche não se sentiram contempladas no processo, nem reconheceram avanços na reivindicação de seus direitos. Várias delas, então, iniciaram uma série de ações, entre elas a ocupação de imóveis. E em 1992, no âmbito dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo às Américas, a organização Conselho de Todas as Terras organizou uma manifestação “em resposta aos 500 anos de opressão” e ocupou propriedades na região de La Araucaria como reivindicação “do território Mapuche”.

O governo local apresentou várias denúncias contra os ocupantes, que foram analisadas por um ministro designado pelo Ministério do Interior. A partir daí, iniciou-se o processo penal citado no caso analisado pela Corte IDH. Os acusados foram condenados em primeira e segunda instância pelos delitos de usurpação, associação ilícita, desacato, furto e dissimulação.

Em sentença divulgada em novembro (21/11), a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que as ações do ministro que formulou a acusação e proferiu a sentença de primeira instância foram guiadas por um viés discriminatório, preconceituoso e por uma ideia preconcebida de natureza ilegítima e ilegal da organização indígena “Conselho de todas as terras”.

“Na tramitação do processo e na sentença não foram observadas diversas garantias judiciais, a saber: a) proibiu-se a divulgação por qualquer meio de difusão de informações relativas ao processo criminal; b) não foi fornecido tradutor ou intérprete aos acusados, que não falavam espanhol, língua em que se desenvolveu a causa; c) a sentença não se pronunciou sobre a situação jurídica de seis pessoas que tinham sido acusadas; d) duas pessoas não incluídas na acusação foram condenadas; e) foi aplicado o tipo penal de associação ilícita, cuja regulamentação em vigor à época não definia com clareza e precisão a conduta penalmente repreendida ; f) ao condenar uma pessoa pelo delito de furto, foi aplicada norma legal que presume autoria do ato ilícito por estar em posse do objeto supostamente roubado, e g) a condenação incluiu uma avaliação incompleta e subjetiva da prova, sem motivação que demonstrasse racionalmente a convicção judicial sobre a responsabilidade das pessoas acusadas”, escreveram os juízes da Corte Interamericana na sentença. O Estado chileno fez um reconhecimento parcial de responsabilidade.

Para a Corte, o Chile violou uma série de direitos, a começar pelo direito a serem julgados por um tribunal imparcial, a contar com decisões judiciais devidamente motivadas, à presunção de inocência, à publicidade do processo, à liberdade de pensamento e de expressão, o direito de reunião, à liberdade de associação, o direito à igualdade e a não discriminação e o direito à autodeterminação dos povos indígenas e originários.

O pesquisador e professor da Universidade Mackenzie Flávio de Leão Bastos, advogado que atua perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, destaca que, a exemplo do caso recente do povo Rama e Kriol, da Nicarágua, a Corte mais uma vez aplica o artigo 26. “Já não se trata apenas do direito de expressão, mas do direito ao próprio modo de se expressar dentro dos seus parâmetros culturais, o direito de ser quem se é. Esse é um ponto muito importante, ressaltando ainda que a liberdade de expressão e a liberdade de opinião já eram garantidas à época na região pelas normas interamericanas. E a Corte entende que as condenações do Estado chileno  desconsideravam o modo de ser do povo Mapuche”, afirma o pesquisador.

Para Bastos, a decisão também inova ao tratar do controle de convencionalidade. “Ainda que considerando que na ordem de cada país é o controle de constitucionalidade o mais vislumbrado e aplicado no dia a dia, o controle de convencionalidade é um controle vertical pelo qual se estabelece e avalia se as normas de um pais e as decisões de seus governantes estão conformes às suas próprias constituições e aos tratados e convenções internacionais, Se não for assim, não podem ser consideradas válidas”, explica, ressaltando que os direitos consagrados na Convenção Americana devem ser ainda mais cuidadosamente considerados como parâmetros numa interpretação à luz de uma cultura indígena e de povos originários.

Votos dissidentes

Essa discussão é tratada no detalhe em voto concorrente conjunto e parcialmente dissidente apresentado pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, e pelo juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México). Os dois apontam que a sentença tem traços inovadores, mas se centram no controle de convencionalidade das normais penais objeto do processo penal iniciado contra as vítimas. Em particular, falam do exame dos tipos penais relativos aos delitos de associação ilícita, furto e usurpação.

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“O Tribunal reconheceu que a redação legal dos dois primeiros delitos mencionados apresentava elementos incompatíveis com o princípio de legalidade”, afirmaram os juízes. Para eles, a Corte ofereceu um exemplo importante “do necessário exercício da competência revisora da Corte IDH contemplada pela incidência conjunta dos artigos 9 e 2, através da cuidadosa revisão da tipificação dos delitos de associação ilícita (em sua redação anterior) e furto, contribuindo significativamente para confirmar os estândares historicamente estabelecidos sobre o princípio de legalidade e suas consequências”.

No entanto, argumentam, a posição majoritária da Corte manda sinais opostos quando, em relação ao delito de usurpação, perdeu a oportunidade de se aprofundar na redação aberta deste delito e na necessidade de tipificação das condutas previstas neste caso. À época do ocorrido, a disposição de usurpação incluía a definição de “com violência ocupar uma coisa imóvel ou usurpar um direito real que outro possui ou tem legitimamente (…)”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos considerou que o tipo penal de usurpação era demasiadamente vago, o que não foi aceito pela maioria dos juízes quando o caso foi levado à Corte.

“Na sentença, a maioria julgou que ali o tipo penal não apresentava maiores problemas ou apresentava problemas contornáveis. No voto dissidente de Mudrovitsch e Mac-Gregor, porém, eles afirmam que o crime de usurpação padece de certa indeterminação, o que no Direito Penal viola o princípio de legalidade em matéria penal. No caso, especificamente em relação ao verbo “ocupar”, que não é especificado no tipo penal de usurpação do Chile”, explica Adriano Teixeira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Teixeira destaca ainda que o tipo penal prevê a ocupação com violência, mas no caso de uma ocupação sem violência, embora com pena menor, aí é que a indeterminação do tipo penal se mostraria um problema mais agudo, pois poderia vir a criminalizar ocupações realmente pacíficas, e com outras motivações, por exemplo, habitacionais.

“Isso não quer dizer que o direito de propriedade deva ser afastado, mas que a solução para esse tipo de questão deveria ficar fora do direito penal, e não por meio desta que é a arma mais poderosa do Estado”, diz o professor.

Nesse contexto, completa, a importância do caso extrapola o direito dos povos originários e reforça o exercício de direitos de cada indivíduo e movimento social de maneira geral. “Ela destaca que os Estados não podem reprimir direitos de maneira direta ou indireta por meio de leis penais mal formuladas”, diz.

No voto dissidente, Mudrovitsch e Mac-Gregor afirmam que, apesar da análise minuciosa dos delitos de furto e associação ilícita, no caso da usurpação o Tribunal “lamentavelmente decidiu que o tipo penal era compatível com a Convenção”. Para os dois juízes, aí a Corte se afasta do conjunto de precedentes construído ao longo de sua trajetória jurisprudencial sobre o necessário escrutínio estrito da convencionalidade das normas penais.

“Sempre se soube que o controle de convencionalidade dos tipos penais nacionais precisa ser criterioso e cuidadoso. A matéria penal reclama relevância, precisamente pela consequência que prevê. Mas é a primeira vez que a Corte enuncia de forma explícita a existência de um critério de escrutínio mais detalhado e estrito para as normas penais, especialmente no que diz respeito à precisão e clareza delas. E o voto dissidente, principalmente, é uma recordação de que esse escrutínio não é qualquer escrutínio, mas um ainda mais criterioso”, afirma Alaor Leite, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Isso é importante no caso em questão, acrescenta Leite, porque a dimensão de amplitude ou ambiguidade dos tipos penais aplicados nesses contextos de lutas políticas, como as ocupações pacíficas de imóveis que visavam chamar a atenção para uma causa popular, pode fazer com que esses tipos penais sejam utilizados pelo Estado como instrumentos de repressão.

“A movimentação do processo criminal já é um instrumento bastante agressivo e que por si só representa uma intervenção do Estado na esfera individual. Então a possibilidade de permanência de um tipo penal aberto no ordenamento jurídico sempre deixa a possibilidade para que o Estado, ainda que não consiga a condenação, movimente um processo criminal para outras finalidades políticas, constitucionais, reparatórias etc., precisamente nesse setor de lutas populares, mas não só”, afirma Leite.

Reparação

A Corte ordenou ao Estado chileno uma série de medidas de reparação, entre elas a adoção dos mecanismos necessários para anular a condenação, se as vítimas ou seus familiares assim o solicitarem. Ao mesmo tempo, determinou, devem ser removidos dos registros públicos quaisquer antecedentes penais ou registros criminais relacionados ao processo penal. A Corte estabeleceu ainda que o Chile faça uma adequação no artigo 454 do Código Penal, que presume como autor do crime (furto ou roubo) aquele que tiver em sua posse o respectivo bem, com o objetivo de eliminar a presunção legal.

O Tribunal ordenou também que o Estado continue a implementar planos de capacitação para erradicar o uso discriminatório do Direito Penal com base na origem étnica das pessoas. Esses planos devem ser permanentes e dirigidos a funcionários do Poder Judiciário e do Ministério Público, afirmou.

A composição do Tribunal para a emissão desta sentença foi a seguinte: Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica); Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) e Verónica Gómez (Argentina). A juíza Patrícia Pérez Goldberg, de nacionalidade chilena, não participou da deliberação e assinatura da sentença. O regulamento do Tribunal não permite a participação dos magistrados em casos que envolvem seus países de origem.

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