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Como um país continental marcado por profundas desigualdades e uma complexa estrutura federativa, o Brasil enfrenta inúmeros desafios na busca por políticas públicas mais eficazes, sustentadas por uma burocracia inovadora que contribua para processos de transformação rumo a um Estado cada vez mais efetivo, democrático e inclusivo.
No cenário geopolítico internacional, o país encontra uma oportunidade estratégica de reforçar seu papel no contexto do Sul Global, especialmente no âmbito dos Brics, aprofundando laços com Índia, África do Sul e, sobretudo, a China – a despeito de diferenças entre sistemas políticos.
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Nesse cenário, as experiências chinesas de governança experimentalista podem oferecer inspirações interessantes para a gestão de políticas públicas no Brasil. Essa abordagem, baseada em pragmatismo e aprendizado incremental, destaca-se por sua adaptabilidade.
A China emergiu como uma referência global em inovação institucional graças à sua estratégia de experimentação de políticas públicas. O país prioriza flexibilidade local e adaptações iterativas antes de expandir programas em escala nacional.
Entre os vários exemplos dessa prática, podemos mencionar a criação das “Zonas Econômicas Especiais” para testar políticas de liberalização econômica em áreas delimitadas antes de aplicá-las nacionalmente. Essas zonas funcionaram como “laboratórios” para experimentar incentivos fiscais, regulamentações de mercado e abertura ao investimento estrangeiro, enquanto o restante do país mantinha políticas tradicionais (vide Heilmann, 2008).
Ou as Township and Village Enterprises, empresas “coletivas” que operavam como híbridos entre propriedade pública e privada, visando o crescimento econômico inicial em áreas rurais (como descreveu Ang, 2016).
Ou ainda a implementação de programas para aumentar a taxa de alfabetização rural em províncias selecionadas, onde diferentes métodos pedagógicos e formas de financiamento foram testados antes de serem escalados para outras regiões (ver Zhou, 2022).
A estratégia chinesa de “experimentação sob hierarquia” equilibra autonomia local com orientação central, permitindo que políticas sejam adaptadas às condições regionais enquanto preservam os objetivos nacionais. Nesse modelo, o governo central estabelece diretrizes gerais e supervisiona os experimentos conduzidos por governos locais, que têm liberdade para interpretar e implementar essas diretrizes de forma ajustada às suas realidades específicas.
Essa abordagem promove aprendizado institucional, inovação e ajustes incrementais. A administração nacional avalia o desempenho das políticas experimentais, identificando as iniciativas bem-sucedidas para eventualmente ajustá-las e escalá-las para todo o país.
O Brasil enfrenta barreiras estruturais e institucionais que dificultam avanços em sua governança pública e planejamento nacional. Para superar esses desafios, é crucial criar mecanismos que promovam adaptação, aprendizado e experimentação, em vez de depender exclusivamente de controles burocráticos centralizados.
Essas ferramentas devem permitir o monitoramento, a avaliação e o ajuste de políticas públicas com base em resultados preliminares, aumentando a eficácia das ações e reduzindo o risco de desperdício de recursos em soluções inadequadas.
Podemos adotar a governança experimentalista adaptativa alinhando grandes objetivos sociais, ou “missões” (conforme Mariana Mazzucato), a projetos-piloto regionais que testem soluções antes de sua ampliação. Isso pode ser feito em diversas áreas, como saúde pública, descarbonização e sustentabilidade ambiental, tecnologia e inclusão digital, por exemplo.
Yuen Ang argumenta que, embora a literatura convencional associe boas instituições ao crescimento, ela frequentemente ignora como sociedades em desenvolvimento criam esses arranjos institucionais. A autora rejeita o determinismo histórico que considera os legados coloniais ou as “instituições extrativas” como barreiras insuperáveis ao progresso de nações.
Dani Rodrik complementa essa visão ao enfatizar que a experimentação é essencial em países de renda média, como o Brasil, onde as instituições estão em evolução e as condições locais variam amplamente.[1] Ambos defendem uma abordagem pragmática para o desenvolvimento, baseada no uso criativo das capacidades locais disponíveis, mesmo que estas sejam consideradas “fracas” ou improvisadas segundo padrões globais. Essa perspectiva permite soluções práticas e adaptadas às necessidades específicas, sem depender de modelos ideais ou importados.
Na China, governos e dirigentes regionais são incentivados a inovar e participar de processos experimentais por meio de modelos de avaliação baseados em desempenho. O sucesso na implementação de políticas pode levar a promoções dentro do sistema burocrático, criando o que Yuen Ang chama de “franquia burocrática”: um arranjo em que as burocracias têm autonomia operacional, incentivos claros baseados em resultados e supervisão estratégica do governo central.
A burocracia chinesa compartilha com o modelo weberiana a organização hierárquica, que assegura coordenação e supervisão, a racionalidade instrumental, orientada para alcançar objetivos específicos de maneira eficiente, e o recrutamento meritocrático por meio de sistemas de exames.
No entanto, o sistema burocrático chinês vai além ao incorporar regulamentação experimental para testar e ajustar políticas, combinando práticas formais com redes informais de colaboração entre governos locais. Embora eficaz para atingir metas específicas, essa flexibilidade desafia os princípios de imparcialidade e previsibilidade do modelo weberiano clássico.
A adoção de uma governança experimentalista no Brasil tem o potencial de trazer benefícios significativos em diversas frentes, como a redução das desigualdades regionais, à medida que soluções adaptadas às condições locais acelerem o desenvolvimento em regiões menos favorecidas.
Além disso, a implementação de processos experimentais fortaleceria a resiliência e a eficiência no setor público, ajudando a identificar políticas eficazes antes de sua expansão em larga escala. Por fim, a participação de governos locais e comunidades no processo de experimentação aumentaria a confiança e a legitimidade das políticas públicas, fortalecendo a nossa democracia.
No entanto, é importante ressaltar que o modelo chinês não deve ser copiado, mas sim adaptado e ajustado às necessidades e ao contexto específicos do Brasil. O modelo também apresenta problemas, como a possibilidade de ampliação de desigualdades regionais, práticas informais que podem levar à corrupção, e uma dependência de incentivos que nem sempre garantem transparência ou accountability.
A lição da experiência chinesa é que soluções inovadoras surgem por meio da experimentação e do uso criativo dos recursos disponíveis, sem esperar por condições ou instituições ideais. Contudo, qualquer adoção dessas práticas deve respeitar o estado democrático de direito e os princípios constitucionais brasileiros.
O foco deve ser em promover inovação e eficácia sem comprometer a transparência, a accountability e os processos legais. Ao aplicar esses princípios de forma contextualizada, o Brasil pode construir um estado mais inclusivo, democrático e efetivo, capaz de enfrentar os grandes desafios da sociedade do século 21. Sem esses cuidados, haveria o risco de enfraquecer ainda mais confiança pública nas instituições, o que torna essa tarefa um dos maiores desafios para a atual geração de gestores públicos brasileiros. Resistências políticas, falta de coordenação intergovernamental e dificuldade de monitorar e avaliar experimentos regionais são obstáculos a superar.
Por fim, deve-se ressaltar que a governança experimentalista não depende de autoritarismo para funcionar; ela reflete uma mentalidade técnica e adaptativa que pode ser incorporada em qualquer sistema político, como afirmou Bardhan (2022). Adotar de forma responsável a experimentação adaptativa pode significar mais efetividade e democracia nos nossos processos de gestão e implementação de políticas públicas.
Ang, Y. Y. (2016). How China Escaped the Poverty Trap. Cornell University Press.
Bardhan, P. (2022). A World of Insecurity: Democratic Disenchantment in Rich and Poor Countries. Harvard University Press.
Zhou, X. (2022). The Logic of Governance in China. Cambridge University Press
Heilmann, S. (2008) Policy Experimentation in China’s Economic Rise. St Comp Int Dev 43, 1–26.
[1] Entrevista para o Boletim Regional, Urbano e Ambiental do Ipea, n. 31,2024, p. 17-23.