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Assim como no ditado “não se pode mudar a regra do jogo enquanto a bola está rolando”, a autoridade tributária deve respeitar os princípios da segurança jurídica, da confiança legítima e da estabilidade nas relações com aqueles que contribuem aos cofres públicos, os chamados contribuintes, sobretudo ao instituir nova regra jurídica ou, eventualmente, alterar algum entendimento consolidado.
Nesse sentido, o Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 100, inciso III, classifica, enquanto normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e decretos, as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas.
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Por seu turno, o parágrafo único do mencionado dispositivo estatui que a observância de tais normas exclui a imposição de penalidades, cobrança de juros de mora e atualização do valor monetário da base de cálculo de tributo que porventura venha a ser exigido.
Complementarmente, o art. 146, também do CTN, estabelece que qualquer modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.
Os referidos dispositivos ganham um contorno ainda mais especial quando analisados à luz do princípio da segurança jurídica, um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse espeque, a segurança jurídica impõe ao Estado tributante que aja de modo a possibilitar minimamente a previsibilidade, a confiabilidade, a estabilidade, a lealdade e a cognoscibilidade do sistema.
Nas lições do tributarista Humberto Ávila[1], que menciona diversas espécies de limitações em matéria tributária, tem-se que, em todas essas normas, “a Constituição Federal dá uma nota de previsibilidade e de proteção de expectativas legitimamente constituídas, e que, por isso mesmo, não podem ser frustradas pelo exercício da atividade estatal”, ao se referir ao princípio da segurança jurídica.
Traçando um paralelo com o reconhecimento dos costumes observados pela administração tributária como normas complementares, tem-se que o sistema pátrio admite que as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades fiscais não configuram meras atitudes informais e esporádicas, mas, sim, comportamentos efetivamente consistentes e que geram nos contribuintes uma legítima expectativa de estabilidade e previsibilidade, de modo a propiciar a confiança em uma relação cujo caráter já é, por si, verticalizado e díspar, considerando a poderosa prerrogativa de tributar do colossal Estado fiscal frente ao contribuinte, parte mais fragilizada.
Pode-se considerar, desse modo, que o respeito a estes preceitos não se trata apenas de uma questão técnica e legislativa, mas uma tônica da realização da justiça fiscal propriamente dita. A confiança legítima e a “não surpresa”, destarte, asseguram um trato de cooperação e mutualidade entre fisco e contribuinte, o que não significa, por óbvio, que o sistema deva permanecer imobilizado e estagnado, mas apenas que, ao serem promovidas mudanças abruptas e repentinas, os contribuintes disponham de um tempo razoável para assimilá-las e se adequar às novas regras.
A título de exemplo, tem-se a discussão sobre a possibilidade de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre valores da tarifa gaúcha denominada Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). A CDE foi instituída no ano de 2002, no entanto, até 2018, jamais havia sido realizada a cobrança do imposto estadual sobre os referidos valores, o que, notadamente, configura uma prática reiteradamente adotada.
Surpreendentemente, a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, no ano de 2018, intimou diversos contribuintes a confessar a pretensa dívida retroativa, ou seja, convidou as empresas do setor energético a realizar a autorregularização. Diante dessa intimação, uma empresa (Cooperluz Cooperativa Distribuidora de Energia Fronteira Noroeste) formulou consulta formal perante a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul para questionar a higidez da cobrança, e obteve resposta no sentido de sua regularidade.
Com receio de sofrer a tributação supostamente devida nos períodos pretéritos à inovação no entendimento do fisco gaúcho e nos períodos posteriores, a empresa impetrou Mandado de Segurança pugnando fosse obstada qualquer autuação, com sustentáculo, justamente, no princípio da não surpresa, e o referido caso chegou ao STJ recentemente.
A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Agravo em Recurso Especial 1.688.160/RS, de relatoria do ministro Francisco Falcão, e apreciou a mencionada alteração na postura do estado do Rio Grande do Sul.
Não obstante tenha reconhecido a regularidade da incidência do ICMS sobre a tarifa discutida com efeitos prospectivos, o STJ decidiu que o contribuinte não poderia ser autuado, em relação aos fatos geradores passados, nem mesmo para a cobrança do tributo, uma vez que a inclusão da CDE na base de cálculo do ICMS jamais foi uma prática da administração tributária local.
Ou seja, a questão que se apresentou foi se a ausência de cobrança do ICMS sobre a referida tarifa, durante dezesseis anos, importou em configuração de costume e de prática adotada continuadamente.
E ao fazer uma interpretação conjunta dos arts. 100 e 146 do CTN, o STJ entendeu que, tendo havido uma inovação repentina no entendimento do fisco do Rio Grande do Sul, os contribuintes necessitariam de um prazo de adaptação, uma vez que restou vislumbrada uma prática reiterada com caráter de norma complementar. Em outras palavras, o STJ reputou prática reiterada a omissão do fisco gaúcho em realizar a cobrança pretendida.
Assim, reconhecendo se tratar de uma norma complementar que pretendia alcançar fatos pretéritos, foram elididas não somente as penalidades, os juros e a correção monetária, mas, como dito, o próprio tributo em relação aos períodos pretéritos.
O entendimento firmado pela Corte Superior se alinha à posição defendida pela doutrina do tributarista Luís Eduardo Schoueri[2], ao afirmar que o costume na esfera tributária é tão relevante que, mesmo na atividade de lançamento, o costume pode se fazer presente e afastar não somente a penalidade, mas também os valores do próprio tributo.
O precedente reflete a necessidade de respeito à segurança jurídica, à confiança legítima e à estabilidade nas relações entre fisco e contribuinte, de tal modo que, ao revisitar os seus entendimentos, a administração tributária deve agir com cautela e transparência, assegurando-se, dessa forma, a previsibilidade e observância ao ordenamento jurídico.
Em arremate, tal como asseverado por Valter de Souza Lobato[3], a despeito de estarmos em um Estado democrático de Direito, os mencionados artigos do CTN (100 e 146) asseguram a segurança jurídica e a confiança, alcançando “não somente os atos administrativos do lançamento, mas também os atos administrativos concretos e individualizados, assim como os atos normativos genéricos e abstratos e as práticas reiteradas que consignem critérios jurídicos razoáveis e, pelo aspecto temporal ou convergência de entendimento, criem a legitima expectativa que deve ser protegida”.
[1] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5.ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012, p. 370. E-book. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788502157361/. Acesso em: 28 nov. 2024.
[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 12.ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 70.
[3] LOBATO, Valter de Souza. O princípio da confiança retratado no Código Tributário Nacional. A aplicação dos artigos 100 e 146 do CTN. A análise de casos concretos. P. 26.