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Passados dez anos da aprovação e aplicação da Lei 12.990/2014,
que regulamentou a implementação de cotas raciais nos concursos públicos
federais, é pertinente analisar os impactos gerados e os desafios ainda
enfrentados para sua efetividade.
A discussão é atual e necessária, considerando que a política de cotas está atualmente sob revisão no Congresso Nacional, uma vez que seu prazo de vigência se encerrou em maio de 2024. Para evitar a perda dos efeitos da lei e a insegurança jurídica até a manifestação legislativa, foi concedida liminar na ADI 7654, prorrogando a vigência do modelo atual de cotas raciais em concursos públicos até que novas regras sejam sancionadas.
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Um dos grandes desafios identificados na aplicação da política de cotas, especialmente nos concursos públicos para carreiras de maior destaque, é o não preenchimento de todas as vagas oferecidas aos candidatos cotistas.
Apesar do aumento do percentual de autodeclarados negros (pretos e pardos), que passou de 17% em 2000 para 38% em 2020 na composição do funcionalismo público federal. Concluiu-se que “(…) é crucial um esforço de aprimoramento da política pública em questão, em especial para dirimir eventuais lacunas na implementação da lei, possibilitando que os indivíduos negros ocupem um repertório maior de cargos no funcionalismo público, sobretudo nas funções com maiores níveis de remuneração, prestígio e poder decisório”.[1]
A realidade observada também demonstra a baixa efetividade da reserva de vagas, especialmente para concursos para membros das instituições jurídicas, entre Defensoria, advocacia pública, Ministério Público e magistratura. Diversos elementos podem ser apontados como limitadores da ação afirmativa adotada, entre eles:
“(a) a ocorrência do fenômeno da segmentação de vagas, quando da elaboração do edital do concurso; (b) a não previsão de convocação posterior de candidatos/as negros/as em vagas excedentes; (c) a ausência de um padrão para a realização das convocações de candidatos/as aprovados/ as na ampla concorrência e nas vagas reservadas; e (d)a carência de maior conhecimento e ciência quanto aos ditames fundamentais da Lei n. 12.990/2014″.[2]
Destaca-se a experiência da Defensoria Pública de São Paulo ao constatar que nenhuma das vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas foi preenchida após finalização do 7º concurso de ingresso na carreira.
Algumas conclusões foram apontadas pelo órgão em nota técnica, para lidar com a ausência de efetividade da política de cotas:
“(…)Outrossim, é essencial que sejam realizados censos periódicos com vistas ao mapeamento da composição étnico-racial da instituição e à identificação das trajetórias funcionais dos indivíduos pretos, pardos e indígenas. A ausência de sistematização de tais informações impede a exata mensuração dos êxitos e fragilidades da política de cotas étnico-raciais, a qual deve produzir efeitos concretos não apenas no que diz respeito à facilitação do acesso à instituição, como também na garantia de permanência dos seus beneficiários nos quadros da instituição a partir de bases não-discriminatórias. A ausência de dados suficientes a respeito da execução da política pública de cotas étnico-raciais não apenas dificulta o seu aprimoramento constante, limitando o alcance de seus resultados, como também o necessário controle externo a ser realizado pelas entidades e movimentos que representam os interesses dos potenciais beneficiários de tal política”.[3]
O referido estudo apresentou ainda diversas proposições visando tornar efetiva a ação afirmativa adotada, entre elas: a) eliminação da cláusula de barreira aos candidatos que concorram às vagas destinadas à negros e indígenas, em uma ou mais fases do concurso; b) pontuação mínima diferenciada aos candidatos cotistas.
Nesse mesmo sentido e buscando impedir distorções das cotas nos concursos da magistratura, a Resolução 516/2023 do CNJ vedou o estabelecimento de cláusula de barreira para candidatos cotistas nos concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Judiciário, em provas objetivas.
Por sua vez, a pontuação mínima diferenciada foi aplicada no 9º concurso de ingresso para a carreira de defensor público de São Paulo, em atendimento às propostas realizadas pelo estudo citado anteriormente. Seguindo o mesmo direcionamento, a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo também aplicou pontuação mínima diferenciada aos cotistas em seu 23º concurso de ingresso, em andamento até o encerramento do presente artigo.
Aponta-se, portanto, a importância de um olhar crítico e sensível para a política de cotas, não sendo suficiente apenas o mero cumprimento da formalidade de previsão em edital para garantir o cumprimento das metas propostas pela medida, especialmente para cargos de maior destaque e dificuldade.
Ainda, são necessários dados e pesquisas que indiquem distorções ou averiguem a política de cotas no contexto dos concursos públicos e possam contribuir para apontar novas estratégias para alcançar mais representatividade nos órgãos públicos.
Por fim, é preciso destacar que a inexistência de ato normativo local não é impedimento para a aplicação das cotas pelos entes públicos estaduais e municipais, como demonstra a experiência de diversos órgãos, como o TCE-SP, o TCM-PA, a DPE-SP, a PGE-SP, entre tantos outros. Não há qualquer afronta ao regramento legal e constitucional nesses casos, já que a adoção de ações afirmativas é incentivada pela Constituição Federal para se alcançar a justiça social e a equidade real que são pilares do nosso ordenamento jurídico.
Não há como pensar no futuro das cotas raciais no Brasil sem que haja um diálogo abrangente que reconheça os avanços conquistados, mas também os desafios ainda presentes. A persistência do debate e a busca por soluções efetivas são essenciais para que as cotas sejam um instrumento real de mudança na estrutura social e contribuam para a construção de um país justo.
[1] ARRUDA, Dyego de Oliveira; BULHÕES, Lucas Mateus Gonçalves; SANTOS, Caroline Oliveira. A política de cotas raciais em concursos públicos: desafios em face da luta antirracista. Serviço Social e Sociedade, 2022, n. 145, p. 98.
[2] DIAS, Gleidson Renato Martins; JUNIOR, Paulo Roberto Faber Tavares. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS Campus Canoa, 2018.
[3] DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Nota Técnica Sobre Cotas Étnico-raciais no Concurso de Ingresso na Carreira de Defensor (a) Público (a) do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/documents/20122/61231f13-d744-cd4f-60f5- 598a4f2c5d2b. Acessado em 12/08/2024