A ditadura e os povos indígenas: silenciamento e invisibilização

Spread the love

Desde que a ditadura (1964-1985) chegou ao fim, inúmeros pesquisadores têm dedicado seus esforços para esmiuçar as causas e efeitos desse período. Mas imersas em uma profunda tradição ocidental, as análises tenderam a separar os personagens dessa trágica e violenta passagem histórica em dois lados que se digladiaram retoricamente e também em conflitos armados.

Nessas interpretações maniqueístas, em que “direita”, “conservadores”, capitalistas e militares combatiam a “esquerda”, progressistas, comunistas e guerrilheiros, e vice-versa, as disputas que fugiam do campo político e econômico ocidentais eram ignoradas.

Isso revela duas coisas. A primeira, é a cristalização da ideia de “vítima da ditadura” como sendo somente aqueles que combateram a agenda política e econômica dos golpistas. A segunda, é como o grupo que mais sofreu violências e perdas na ditadura, os indígenas, é visto pela sociedade e pelo Estado.

A Comissão Nacional da Verdade divulgou seu relatório final e apontou pelo menos 8.350 indígenas mortos por ação direta ou omissão do Estado num recorte histórico que incluiu o período da ditadura. É verdade que até então houve pessoas e instituições que buscaram revelar as atrocidades sofridas pelos indígenas, como Egydio Schwade e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), mas como reconhecimento por grupos ligados a governos, foi uma grande novidade.

Por que um número tão alto de vítimas do Estado brasileiro demorou tanto para ser reconhecido? E por que, mesmo com esse alarmante número ainda não se implementou a recomendação da Comissão Nacional da Verdade de se criar uma Comissão Nacional Indígena da Verdade e aprofundar as investigações sobre o genocídio de povos indígenas?

O primeiro motivo está na naturalização da ideia de que “indígena” é uma condição de transitoriedade, uma categoria atribuída a pessoas consideradas “selvagens”, “atrasadas”, vivendo no “passado”, que ao adotarem os costumes dos ocidentais passariam a ser civilizadas. Esse entendimento foi fundamental para que incontáveis histórias de violência fossem ignoradas, já que não eram vistas como violência, mas parte do processo civilizatório. Especialmente porque na república nunca houve um posicionamento oficial contra os indígenas e suas as resistências, como as “guerras justas” dos tempos do Brasil colônia. Em outras palavras, a república brasileira nunca teve oficialmente os indígenas como seus “inimigos”, mas como pessoas que deveriam ser “salvas” e “protegidas”.

Isso já estava fortemente presente nos ideais da primeira agência indigenista do estado brasileiro, o SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e se manteve quando a Funai (então Fundação Nacional do Índio, atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas) foi criada, em 1967. As leis que criaram ambas as agências asseguravam seu compromisso em defender e garantir os direitos dos povos indígenas. Para todos os efeitos, as ações das agências indigenistas, fossem quais fossem, tinham um só objetivo: proteger os indígenas.

O caso dos Kinja, conhecidos como Waimiri-Atroari, ilustra bem o que isso significou. No final da década de 1960 foram realizadas pesquisas em seu território ancestral com o objetivo de se construir uma rodovia, a BR-174. Tendo sido esse grupo indígena localizado na região, iniciou-se o processo de “atração” e “pacificação” por parte de um missionário, o Padre Calleri.

Essa tentativa levou à sua morte causando comoção nacional reforçando a velha construção colonialista do “índio selvagem”. Consequentemente, os militares envolvidos na construção da estrada, o 6º Batalhão de Engenharia e Construção, adotaram um comportamento mais belicoso a fim de garantir o sucesso da rodovia. Parte do objetivo de conectar as capitais brasileiras, o trajeto da BR-174 não foi escolhido aleatoriamente.

Além de cortar o território Kinja no meio, ele está estrategicamente próximo a locais de grande potencial mineral. A maior prova é o contrato firmado em 1982 pela própria Funai com uma empresa de mineração, a Paranapanema, em que esta era autorizada a construir uma estrada a partir da rodovia. O resultado é a construção da Usina de Pitinga para extração mineral em local outrora parte do território ancestral Kinja. O mesmo se deu posteriormente, com a construção da Usina de Balbina.

Para concretizar tais empreendimentos, estima-se que mais de duas mil vidas Kinja tenham sido ceifadas, entre mortes por doenças e ataques por armas de fogo, informação que Egydio Schwade vem divulgando há anos e que compõe o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Para os Kinja e outros povos indígenas que sofreram violências similares durante a ditadura significou silenciamento e invisibilização. E apesar desses horrores, para os fins desenvolvimentistas, os empreendimentos foram um sucesso. A sociedade nacional pôde celebrar o ufanista lema da ordem e do progresso.

O segundo motivo é a dificuldade em se tratar abertamente sobre o período da ditadura, seu legado e o papel dos militares na sociedade contemporânea. Enquanto nossa vizinha Argentina, para citar um exemplo, investigou, julgou e sentenciou os militares envolvidos em casos de tortura, mortes e sequestros de crianças de seu período ditatorial, no Brasil, eles seguem com grande poder, independentemente de ocuparem posições de grande relevância política. Assim, é como se o período da ditadura devesse permanecer intocável, em silêncio, sendo aceitadamente evocada apenas se for para exaltações desmedidas e devaneios patrióticos.

Isso ficou evidenciado quando a própria Comissão Nacional da Verdade se deparou com as restrições impostas pelos militares ao tentar investigar documentos que os envolviam. Mais ainda, quando recentemente o presidente Lula vetou menções oficiais sobre os 60 anos do golpe para evitar mais rusgas com os militares argumentando que esse período deve ficar no passado.

Esse posicionamento merece todas as críticas recebidas, já que ele perigosamente flerta com o apagamento histórico. Mas, curiosamente, em 2 de abril de 2024, quase no mesmo dia do aniversário do golpe, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos analisou pedidos de reparação coletiva de indígenas dos povos Krenak e Guarani-Kaiowá pelas violências sofridas durante a ditadura. Enéa de Stutz, líder da Comissão, chegou a pedir perdão de joelhos em nome do estado brasileiro às lideranças indígenas presentes no local. Esse aparente paradoxo é um exemplo de um país em que os militares seguem detendo imensos poderes ao mesmo tempo que se busca reconhecimento e reparação por todas as violências causadas por eles.

Se existem barreiras para se desvelar a história do próprio Estado brasileiro, portanto, do que faz parte da lógica ocidental, o reconhecimento e a reparação do que aconteceu aos povos indígenas, que partem de outras lógicas, e que historicamente foram invisibilizados, silenciados, apagados e alvo de toda sorte de violência, é tarefa das mais árduas. Porém, se para os ocidentais a história pode ser deixada de lado, em silêncio, a ponto de se esquecê-la no passado, aos povos indígenas é o oposto. Ela não pode ser deixada para trás, pois segue acompanhando-os em suas lutas diárias contra a permanente colonização, agora, por parte do Estado brasileiro. Ela é uma memória viva e permanente.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *