No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Quem tem medo da responsabilidade civil?

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Após longos debates, audiências públicas e diálogos com variados setores da sociedade brasileira, a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil enviou um conjunto de propostas ao presidente do Senado Federal, para que o Congresso avalie o mérito do projeto. Como acontece em qualquer iniciativa reformadora, surgem vozes discordantes, seja quanto à conveniência das alterações, como ao seu conteúdo. 

Naquilo que nos coube, equilibrando tradição e inovação, pretendeu-se a sistematização da responsabilidade civil, tendo em vista o estágio atual da sociedade brasileira, e o que se vislumbra para as próximas décadas, consolidando avanços jurisprudenciais e doutrinários, sem olvidar de recentes contribuições legislativas advindas de ordenamentos da mesma tradição. Com efeito, outros sistemas jurídicos funcionam como espelhos – vendo-se os outros, percebe-se melhor o que somos.

A responsabilidade civil de 2024 se encontra em um estágio muito distante da época em que foi elaborado o projeto do Código Civil. A codificação de 2002, cuja construção técnica contemplava o estado da arte do início dos anos 70, reprisou substancialmente as regras de responsabilidade civil do Código Civil de 1916. Acolheu, de modo elogiável, o movimento de objetivação da responsabilidade civil, mediante uma cláusula geral do risco. Nos últimos vinte anos, porém, não houve qualquer alteração legislativa. Não se trata, apenas, de um hiato temporal, mas de décadas que transformaram profundamente a vida humana, seus costumes e a economia. 

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Como frisou o jurista italiano Stefano Rodotá, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme. Ela exerce o importante papel de repositório das disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil atrelada, em grande medida, às patologias da propriedade individual e do descumprimento de contratos próprios de uma economia menos complexa.

Contudo, a responsabilidade civil contemporânea recebe uma pluralidade de demandas: além de equacionar a violação de complexas situações patrimoniais – v.g. danos a ativos intangíveis e no interno de estruturas societárias –, acaba por compor efeitos danosos da violação de direitos da personalidade, direitos difusos, e das recentes pressões oriundas das tecnologias digitais emergentes.

É a realidade, e não a vontade dos juristas, que impõe mudanças na disciplina positivada da responsabilidade civil.

Na linha da indagação de Edward Albee sobre os medos imaginários (Who’s afraid of Virginia Woolf?), é certo que os magistrados e os advogados não têm porque recear a reforma da responsabilidade civil. A sua modernização não demanda exaurimento normativo, sendo suficiente um refinamento dos enunciados intencionalmente indeterminados, mediante incorporação de parâmetros decisórios claros, para o necessário caminhar da doutrina e aperfeiçoamento das decisões de juízes e tribunais.

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Há uma particularidade na responsabilidade civil: o fato de ser um conjunto de normas dirigida aos magistrados. A maior parte das demandas cíveis – desde os juizados especiais até os tribunais superiores – conecta-se ao tema da responsabilidade civil, majoritariamente lides relacionadas à incidência e quantificação de danos morais, avaliação de quebras contratuais e violações a direitos de consumidores. Se o que pretendemos é mitigar a discricionariedade judicial e a imprevisibilidade na solução de múltiplas demandas, o primeiro passo consiste em oferecer critérios objetivos para que decisões sejam cognoscíveis e controláveis, em nível de contenção de ilícitos e reparação de danos.

Os setores produtivo e financeiro também não têm o que temer com a reforma da responsabilidade civil. Não há aumento de custos de transação em cenários de segurança jurídica e previsibilidade, traduzidas em um conjunto de normas que sinalize as regras do jogo, com firmes parâmetros de julgamento. Infelizmente, o cenário atual é refratário aos agentes econômicos, pois diante do abismo entre as regras do Código Civil e aquilo que se apresenta incessantemente ao litígio, abandona-se o sistema romano-germânico da predominância da lei como principal vetor dos julgamentos, criando-se uma hipertrofia do papel dos tribunais, com grande dificuldade na construção de uma tradição de precedentes coerentes, que de maneira estável ofereça alternativa a uma legislação defasada.

Como apontou em recente publicação o ministro Luiz Edson Fachin, “a tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência”.

Os civilistas que estudam Direito Comparado e compreendem as tendências da Europa Continental e do elogiado Código Civil argentino de 2015 recebem de bom grado a reforma do Código Civil, conscientes de que a responsabilidade civil é multifuncional. Os danos preponderantes no século XXI não são mais apenas individuais e patrimoniais. Eles são sociais, metaindividuais, extrapatrimoniais, frequentemente anônimos, dispersos, catastróficos e irreparáveis. É uma ficção crer que, tal como nos oitocentos, uma indenização será capaz de restaurar a vítima a situação anterior à lesão.

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O Judiciário está assoberbado de intermináveis demandas em que vítimas jamais serão compensadas. Justamente por isso, o projeto da reforma da responsabilidade civil mantém a primazia da função compensatória. Porém, acresce à missão de ressarcimento de danos à de contenção de comportamentos antijurídicos, prevenindo ilícitos, atuando pedagogicamente no sentido de desestimular condutas demeritórias e, através de uma função promocional, premiando com a redução da indenização aqueles cuja conduta é a causa adequada para o dano, mas que atuaram conforme a boa-fé, prevenindo e mitigando danos. 

A responsabilidade civil não se limita ao Código Civil. Ela é um sistema de gestão de riscos, que requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. A atualização do Código Civil é uma pequena parte de uma tarefa que os alemães nomeiam como “acordo de captura mútua”, que almeja a harmonização entre a cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, integrando um arsenal de instrumentos necessários à prevenção e ao ressarcimento dos efeitos dos atos ilícitos.

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