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Recentemente, a discussão sobre as saídas temporárias de presos, benefício previsto na Lei de Execução Penal (LEP), ganhou tração no Congresso Nacional, com a aprovação do PL 2253/2022 na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Venho defendendo a necessidade de reformulação das chamadas “saidinhas” desde 2011, quando apresentei na Câmara o PL 583/2011, que originou a proposta hoje em discussão. No entanto, ao contrário do que foi aprovado nas duas Casas, meu projeto nunca previu a extinção desse mecanismo de ressocialização, e sim seu aperfeiçoamento.
Em 13 anos de discussão, o texto endureceu na Câmara, que acabou com o benefício, e depois foi flexibilizado no Senado, passando a permiti-lo de forma mais restrita. Atualmente, as saídas temporárias são previstas para detentos do regime semiaberto, que podem sair temporariamente em três situações: visitar a família; frequentar curso supletivo profissionalizante, ou participar de atividades de retorno ao convívio social. Se prosperar o texto do Senado, esse benefício ficará restrito apenas a saídas para estudos, desde que os presos beneficiados não tenham sido condenados por crimes hediondos ou violentos.
Agora que a discussão retorna à Câmara, é preciso colocar holofotes sobre premissas básicas, a fim de que a resposta apresentada à sociedade busque resolver o problema que está na origem, sem afrontar a própria Constituição Brasileira e o princípio da dignidade humana. É preciso lembrar que a saída temporária de presos existe há praticamente 40 anos no Brasil. Sua previsão está consagrada na Lei de Execução Penal, que determina, em seu art. 1º, o objetivo da execução da pena: efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado.
Ou seja: o sistema de execução criminal foi estruturado para que o preso retorne à sociedade, e assim deve ser, uma vez que não há prisão perpétua no Brasil. Esta reintrodução gradativa da população prisional, cujo total de pessoas em 30 de junho de 2023 era de 649.592 (fonte: SENAPPEN/MJSP), além de estimular o bom comportamento, é uma forma de evitar que os detentos voltem a cometer crimes.
Voltando um pouco no tempo, é válido lembrar que, em 2015, foi realizada a Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário Brasileiro. No relatório final[1], a CPI constatou que “a ressocialização no Brasil ainda encontra-se em estágio muito incipiente, sendo inexistente em diversos de nossos estabelecimentos penais. Dessa forma, mostram-se necessárias medidas que, de alguma forma, auxiliem nesse processo ressocializador e reintegrador, chamando a própria sociedade a atuar em conjunto com o Estado.”
Dados e fatos sobre as saídas temporárias
Casos de detentos que se utilizam das “saidinhas” para fugir e voltar à criminalidade provocam um justo temor e indignação na população. Mas é preciso olhar fatos e dados: números mais recentes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública[2], mostram que 120.244 presos e presas tiveram direito à saída temporária entre janeiro e junho de 2023. Esse número, entretanto, não engloba as três possibilidades legais, mas tão somente os que saem para o convívio familiar.
Já o número de presos que não retornou da “saidinha” no mesmo período foi de 7.630, e leva em consideração as três possibilidades de saída temporária. Fazendo essa ressalva, chega-se ao percentual nacional estimado de 6,35% daqueles que não retornam, sabendo que, na realidade, esse percentual é menor. Significa que 93,47% não abandonam o sistema prisional. Isso sem considerar aqueles que não retornaram em razão de condições extremas, como óbito.
Não parece justo legislar para que um direito da esmagadora maioria dos detentos que respeitam as regras seja extinto em razão de uma parcela mínima que não tem comportamento adequado.
Olhando pelo viés do gênero, o percentual de abandono entre as mulheres foi ainda menor: 5,43%. Uma quantidade significativa de apenadas mulheres, muitas delas mães – e que retornam mais do que a média – estará também suprimida do direito à reintegração social e familiar.
Considerando a estatística das Unidades da Federação com maior população carcerária em saída temporária, quais sejam, São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Pará e Rio de Janeiro, têm-se:
No entanto, o instituto precisa ser aperfeiçoado. Números dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro evidenciam que precisamos de novas medidas de controle quando os apenados são postos temporariamente em convívio social, além de critérios mais rigorosos para conceder o benefício.
Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo[3], dos 34.547 presos que tiveram direito à saidinha de Natal em 2023, 1.566 não voltaram, ou seja, 4,53%. Mas, o que chama mais atenção: 81 foram flagrados cometendo crimes durante o período, o que representa uma parcela de 0,23% do total de presos beneficiados. Por outro lado, no Rio de Janeiro, os números da secretaria penitenciária estadual mostram que, de 1.785 detentos com direito à saidinha de Natal, 255 não voltaram ao presídio, entre eles, chefes de facções criminosas. É um índice de 14,29% de não retorno, quase três vezes mais que a média nacional. Isso é inaceitável e precisa mudar [ver tabela abaixo].
Tabela elaborada com dados das secretarias penitenciárias estaduais divulgados à imprensa sobre a quantidade de presos liberados para a saída temporária de Natal em 2023
Dados sobre o sistema penitenciário precisam ser melhorados
Os números sobre as “saidinhas” de Natal em 2023 nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais nos ajudam a chegar a um diagnóstico importante sobre (i) a quantidade efetiva de presos que cometem crimes durante o gozo do benefício; (ii) a falta de critério rigoroso na autorização, que permite a saída de presos considerados perigosos; e (iii) o índice de recaptura desses detentos pela polícia.
No entanto, nenhum desses dados está consolidado ou disponível em um sistema único capaz de permitir um diagnóstico amplo sobre o que acontece em nível nacional. A unificação, padronização e o detalhamento das informações do sistema penitenciário, além de sua divulgação periódica e obrigatória de forma transparente, são primordiais para chegarmos a um diagnóstico concreto para propormos soluções qualificadas para a questão.
Rigor nos critérios de concessão e monitoramento são uma solução
As fugas e cometimentos de crimes podem ser reduzidos a zero com o emprego de tecnologia e a reformulação dos critérios de concessão do benefício. Vejamos o exemplo de Minas Gerais: dos 160 presos que não retornaram aos presídios após a saída temporária no Natal de 2023, mais da metade (52,5%), foi recapturada pela polícia. E se estivessem todos com tornozeleira eletrônica? Um rastreamento efetivo teria o potencial não só de diminuir episódios de fuga, como elevar esse percentual de recaptura, além de evitar os custos empregados em operações de busca.
Defendo esse controle desde 2011, através do monitoramento eletrônico, quando o preso estiver fora do cárcere com o objetivo de se ressocializar, o que é perfeitamente possível. Essa previsão está no PL 583, de minha autoria, que foi substituído pelo PL 2253/2022, atualmente em discussão.
Segundo dados da SENAPPEN/MJSP, extraídos do Relatório de Informações Penais do primeiro semestre de 2023, o quantitativo de tornozeleiras, em 30 de junho de 2023, era de 121.911 unidades, das quais 92.894 estavam em uso. Veja:
Portanto, se considerarmos apenas a quantidade de presos que teve direito, no Brasil, à saída temporária no Natal em 2023 (57.235 detentos), seria preciso adquirir cerca de 28 mil tornozeleiras a mais para monitorar 100% dos contemplados com o benefício. Para se ter uma ideia, o custo unitário de uma tornozeleira eletrônica varia de R$ 200 a R$ 250 por mês. Estamos falando de um investimento de aproximadamente R$ 7 milhões.
Propostas de aprimoramento na legislação
É inegável que houve uma mitigação do rigor do texto pelo Senado, se aproximando da ideia original do meu projeto. No retorno desta discussão à Câmara dos Deputados, pretendemos propor melhorias ao texto. Entre elas, autorizar a saída até 3 vezes ao ano (atualmente, os presos do regime semiaberto podem sair até 5 vezes ao ano) e tornar obrigatória a monitoração eletrônica, incluindo sua manutenção e conservação nas condições impostas na autorização de saída.
Além disso, proporemos não permitir saída temporária do reincidente, mas somente do condenado primário; exigência do cumprimento de 1/3 (um terço) da pena (atualmente, é necessário cumprir 1/6 da pena, se primário, e 1/4, se reincidente); não ser permitida no caso de cometimento de crimes com violência ou grave ameaça contra a pessoa, além dos hediondos; observância do laudo do exame criminológico, cuja data não deve ser superior a um ano; manutenção das demais exigências já previstas na LEP; aprimoramento dos dados do sistema penitenciários dos entes da federação.
Exame criminológico
Outro aspecto que merece destaque no PL que retornou do Senado à Câmara é a previsão da necessária realização de exame criminológico para progressão de regime. Atualmente, o exame criminológico é solicitado pelo juízo da execução quando este considera necessário para a formação do seu convencimento. Com a aprovação do PL, esse exame será obrigatório, fornecendo ao juiz melhores informações acerca das condições do preso para transferência a um regime mais brando de cumprimento de pena.
Nesse ponto, Câmara e Senado convergem. Ou seja: haverá maior rigor para que o preso, por exemplo, avance para o semiaberto, permitindo uma identificação prévia do perfil do infrator que poderá vir a ser beneficiado com a “saidinha” .
Assim, o apenado já tenderá a ficar mais tempo preso. Acabar ou diminuir drasticamente a “saída temporária” reforçará esse maior encarceramento, masculino e feminino, em um sistema prisional no qual já ocorre a violação massiva de direitos fundamentais, em razão de condições como superlotação e péssima higiene. Esse triste reconhecimento, de repercussão mundial, consta em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de cautelar, no ano de 2015, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347.
Debate é sempre político, mas precisa se ancorar na técnica
É preciso o olhar atento do Estado para o Sistema Prisional, que não pode ser utilizado como instrumento meramente punitivo. A necessidade de assegurar a dignidade dos presos e presas que retornarão ao seio social é também o meio para garantir a segurança da sociedade. Eliminar ou mitigar esse benefício, que funciona para mais de noventa por cento de quem está no sistema prisional, gerará um problema ainda maior para a segurança pública, na medida em que o sistema carcerário fomenta a violência e a criminalidade.
Os casos recentes envolvendo crimes de presos ligados à chamada “saidinha” nos trazem indignação e, ao mesmo tempo, oferecem uma oportunidade de se encontrar uma solução definitiva para esse problema. Como dizia o conhecido estrategista chinês Sun Tzu em A arte da guerra, a energia é que tensiona o arco; decisão é a que solta a flecha. E esse debate não pode ficar refém de convicções ideológicas. O desejo de vingança não pode prevalecer nesta discussão ou em propostas que só visam ao punitivismo penal. Tampouco a condescendência ou aversão a qualquer endurecimento dos instrumentos penais. Com ciência, dados concretos, rigor técnico e boa política, temos a chance de produzir uma legislação de qualidade para oferecer a resposta efetiva que a sociedade espera.
[1] Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário Brasileiro, de 2015, disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1366810&filename=REL%202/2015%20CPICARCE%20=%3E%20RCP%206/2015
[2] Dados extraídos do Relatório de Informações Penais – RELIPEN, 1º semestre de 2023. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf Acesso em 28/02/2024.
[3] ‘Saidinha’: mais de 700 detentos são presos pela PM de SP em duas semanas. Disponível em https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/saidinha-mais-de-700-detentos-sao-presos-pela-pm-de-sp-em-duas-semanas/ Acesso em 29/02/2024.