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Publicamos recentemente neste JOTA uma série de cinco artigos sobre o imposto seletivo. O último deles tratou do IS-extração, incluído pelo Senado no texto da PEC 45/2019 em decorrência das emendas 292 e 497, apresentadas com o propósito declarado de viabilizar a instituição do carbon tax no Brasil.
Como a existência do carbon tax no Brasil evitaria sua cobrança no exterior, discorremos naquela oportunidade que a expressão “independentemente da destinação” poderia ter sido inserida no inciso VII do §6º do art. 153 para possibilitar a cobrança do imposto nas exportações.
Após participarmos de alguns debates acadêmicos sobre o IS-extração, entendemos necessário retificar nossa afirmação inicial. A nosso ver, o IS, também na modalidade atípica incidente na extração, não poderá ser cobrado nas exportações.
A desoneração das exportações foi um dos pilares da reforma tributária. Conforme a exposição de motivos do texto original da PEC 45/2019, “a desoneração completa das exportações” é fundamental para a competitividade das empresas brasileiras no exterior.
Por essa razão, a EC 132/2023 veda expressamente a incidência dos tributos gerais sobre o consumo (IBS e CBS) e do tributo especial sobre o consumo (IS) nas exportações, como consta dos arts. 156-A, §1º, III, e 153, §6º, I, da CF, respectivamente.
Quanto ao IS, o §6º e seu inciso I do art. 153 preveem que “o imposto previsto no inciso VIII do caput deste artigo” (…) “não incidirá sobre as exportações”. Como o inciso VIII do caput prevê a incidência do IS sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, depreende-se, da leitura combinada desses dispositivos, que a vedação à cobrança do imposto nas exportações é aplicável tanto às hipóteses de produção, comercialização ou importação, como à extração.
Nesse sentido, não pode ser admitida a interpretação de que a expressão “independentemente da destinação”, utilizada no inciso VII do §6º do art. 153, ao dispor sobre a alíquota e a base de cálculo do IS-extração, autorizaria a cobrança do imposto em caso de exportação do produto extraído.
Nossa opinião está fundamentada em três pilares: os princípios da interpretação constitucional, os propósitos das emendas que embasaram a inclusão do IS-extração e as regras de técnica legislativa.
Entre os diferentes preceitos orientadores da interpretação do texto constitucional, destaca-se o princípio da unidade da Constituição, que “obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar”[1]. É, nas palavras do Min. Luís Roberto Barroso, “uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas”[2] constitucionais. Ou seja, as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo a evitar contradições entre elas.
Ora, se o inciso I do §6º do art. 153 vedou textualmente e sem limitações a incidência do IS sobre exportações, não se pode interpretar que outro inciso do mesmo parágrafo, valendo-se de expressão diversa (“independentemente da destinação”), autorizaria a cobrança do imposto sobre as exportações de produtos oriundos de extração.
A impossibilidade de incidência do IS-extração em caso de exportação é corroborada ainda pelo princípio da concordância prática ou da harmonização, utilizado como técnica de interpretação constitucional. Por meio dele, “os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício de outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto”[3].
Admitir a incidência do IS sobre as exportações de produtos extraídos sacrificaria, nesses casos, a vedação geral à cobrança no imposto em operações de exportação, contida no inciso I do §6º do art. 153, contrariando a harmonização necessária entre os dispositivos constitucionais.
Essa interpretação, de que o art. 153, §6º, VII permite a cobrança do IS-extração nas exportações, contraria até mesmo as emendas das quais decorreu a previsão de incidência desse imposto sobre a extração.
Por meio da emenda 292 à PEC 45, foi proposta nova redação ao inciso VIII do art. 153, para incluir a extração entre os possíveis fatos geradores do IS. Propôs também alterar o inciso I do §6º, de “não incidirá sobre as exportações” para “poderá incidir sobre as exportações”. Quanto à segunda alteração, como o dispositivo aplicava-se ao IS de um modo geral, a proposta permitiria a incidência sobre toda e qualquer exportação de bem ou serviço sujeito à tributação especial.
Já na emenda 497, foi proposta a inclusão da palavra “extração” no inciso VIII do art. 153, e a alteração do inciso I do §6º, para permitir a incidência sobre exportações “nos casos de aplicação de impostos de ajuste de fronteira pelos países de destino”.
Essas emendas tinham o objetivo de viabilizar a cobrança do carbon tax no Brasil. Essa intenção fica bem clara na justificação da emenda 497, ao explicar que a cobrança do IS sobre o carbono seria viabilizada pela inclusão da palavra “extração” no inciso VIII do art. 153.
A possibilidade de incidência sobre exportações em caso de implementação de imposto de ajuste de fronteira pelo país de destino visaria “um ganho de competitividade para as exportações brasileiras”, pois o carbon tax pode ser cobrado no exterior sobre produtos originados de países com políticas mais brandas em relação às emissões de carbono (o que seria evitado, no caso das empresas brasileiras, pela cobrança de tributo semelhante no País).
O texto final conferido ao art. 153, §6º, VII, contudo, ficou desconectado das redações propostas e das justificações das referidas emendas. Utilizou expressão inexistente nas emendas (“independentemente da destinação”) e outra técnica legislativa, ao criar inciso próprio para o IS-extração.
A interpretação que ora defendemos está também alinhada às regras de técnica legislativa, prescritas pela LC 95/1998. Ainda que hierarquicamente inferior à Constituição, objeto da interpretação em debate, essa lei complementar foi editada em cumprimento ao comando contido no art. 59, parágrafo único, da própria CF, e serve como um guia para a elaboração e a interpretação de textos legais.
De acordo com o art. 11 da LC, os textos legais devem ser redigidos com clareza, precisão e ordem lógica. Para a obtenção da clareza, as palavras e expressões devem ser usadas “em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando”.
Aplicando-se esse racional ao art. 153, §6º, VII, conclui-se que a leitura mais apropriada da palavra “destinação” se refere à finalidade do produto da extração, isto é, ao seu uso. Isso porque, embora tal palavra possa ser usada para se referir a um local, no sentido de destino, é usualmente empregada no ordenamento jurídico brasileiro para se referir a uso ou finalidade.
O próprio texto constitucional concede alguns exemplos. A palavra “destinação” foi empregada dezessete vezes, das quais uma se refere ao IS-extração, ora debatido, sete se referem ao uso (ou repartição) de receitas tributárias (das quais cinco estão revogadas), oito se referem a uso de recursos públicos em geral e um se refere ao uso do patrimônio de entidades educacionais. Em nenhuma hipótese o texto constitucional empregou a palavra “destinação” para se referir a destino físico, sentido que permitiria a interpretação de que o inciso VII do §6º do art. 153 autoriza a incidência do IS-extração nas exportações.
Além do texto constitucional, a expressão “independentemente da destinação” é frequentemente usada nas legislações estaduais de ICMS para se referir ao uso de mercadorias, a exemplo da Resposta à Consulta Tributária 28868/2023, do Estado de São Paulo, que caracteriza como autopeças as mercadorias com finalidade de integrar veículo automotor, ainda que não sejam utilizadas dessa forma pelo adquirente.
A expressão é empregada de forma semelhante na legislação de PIS/Cofins, a exemplo da Solução de Consulta Cosit 594/2017: “É reduzida a zero a alíquota da Cofins (…) independentemente da destinação do produto (uso humano ou veterinário)”.
Ainda conforme a LC 95, para a obtenção da precisão, o legislador, ao expressar ideias repetidas no texto, deve usar “as mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico”, e “evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto”.
Nessa linha, a forma apropriada de excepcionar a extração da vedação geral de incidência do IS nas exportações seria utilizar a mesma expressão do texto excepcionado. A solução teria sido prever que, em caso de extração, o imposto poderá ser cobrado na exportação, e não usar expressão diversa (“independentemente da destinação”).
Por fim, nos termos da LC 95, para a obtenção de ordem lógica, devem ser expressos por meio de parágrafos “os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”. Já os incisos, alíneas e itens devem ser usados para “promover as discriminações e enumerações”. Como não corresponde à melhor técnica legislativa excepcionar um inciso por meio de outro inciso, a racionalidade nos leva a concluir que a regra de imunidade do inciso I não foi excepcionada pelo inciso VII do §6º do art. 153 da CF.
Entendemos, assim, ser descabida, ilógica e imprecisa a eventual interpretação de que o IS-extração poderá ser cobrado nas exportações. A expressão “independentemente da destinação” diz respeito à forma de uso do produto extraído. E, quanto ao uso, a cobrança do IS-extração, se ocorrer, deve ser compatibilizada com a materialidade constitucionalmente prevista para o imposto seletivo no art. 153, VIII, restrita aos bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, conforme nosso artigo de 12/2/2024.
*
Com nossos agradecimentos a Daniel Clarke e Nina Pencak, pelos debates e contribuições ao texto.
[1] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 232.
[2] Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[3] COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 91.