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A não-cumulatividade do ICMS, prevista no artigo 155, §2º, inciso I da Constituição Federal, assegura ao contribuinte o abatimento do imposto pago nas etapas anteriores da cadeia comercial. O imposto é apurado mensalmente pela diferença entre créditos (ICMS das entradas) e débitos (ICMS das saídas). Quando o contribuinte acumula mais créditos que débitos em um período, gera-se um saldo credor, que pode ser utilizado em períodos futuros para compensar débitos do imposto.
Para preservar a neutralidade fiscal e permitir o uso desse saldo em momentos de necessidade, o artigo 24, III da Lei Kandir autoriza que o saldo credor seja transportado para períodos subsequentes. Essa prática é fundamental para garantir que o contribuinte não seja prejudicado por sazonalidades de mercado ou por oscilações no volume de operações tributáveis, equilibrando a carga tributária ao longo do tempo.
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Além disso, empresas que frequentemente acumulam saldos credores, como as exportadoras, podem solicitar a conversão desse saldo em crédito acumulado, conforme prevê o artigo 25 da Lei Kandir. O crédito acumulado, uma espécie de “moeda fiscal”, após homologação pelo Fisco, pode ser utilizado para fins mais amplos, como transferência a terceiros, pagamento de fornecedores ou quitação de débitos fiscais, sendo um instrumento essencial para setores estratégicos.
Entretanto, apesar da não-cumulatividade ser uma garantia constitucional, alguns estados têm adotado medidas para restringir o direito ao aproveitamento de saldos credores, impondo prazos de prescrição que carecem de base legal, o que pode representar um movimento para uma espécie de calote em razão da proximidade da Reforma Tributária.
O artigo 23 da Lei Kandir
O Artigo 23 da Lei Kandir está sendo frequentemente interpretado de forma equivocada como limitador do prazo para o aproveitamento de saldos credores ou créditos acumulados do ICMS. No entanto, uma análise cuidadosa revela que a norma não impõe essa limitação. Seu caput determina que o direito ao crédito decorre da não-cumulatividade, condicionado à verificação de documentação idônea e à escrituração da operação no prazo legal. Já o parágrafo único prevê que “o direito de utilizar o crédito extingue-se depois de decorridos cinco anos contados da data de emissão do documento”. Essa “utilização” refere-se à escrituração e não à compensação ou liquidação dos créditos.
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Conforme as regras de interpretação legislativa, o parágrafo único deve ser lido como complemento do caput. Ou seja, o prazo de cinco anos limita-se ao reconhecimento formal do direito ao crédito, por meio da escrituração das operações que o originaram, como a entrada de insumos com notas fiscais idôneas. Isso está em conformidade com os artigos 10 e 11, III, “c”, da Lei Complementar nº 98/1995, que orientam a interpretação de normas. Dessa forma, o prazo não se aplica à liquidação ou ao aproveitamento posterior dos créditos.
Além disso, a Lei Kandir diferencia os conceitos de “utilizar” e “liquidar”. Enquanto o termo “utilizar”, no artigo 23, refere-se à escrituração do crédito, o termo “liquidar”, como aparece no artigo 24, trata da compensação efetiva dos créditos com débitos de ICMS. Assim, o legislador não impôs qualquer limitação temporal para a liquidação de créditos já reconhecidos e escriturados, mas apenas para a formalização inicial desses créditos.
Diversos estados, como São Paulo e Paraná, adotam essa mesma posição, permitindo o aproveitamento indefinido dos créditos desde que devidamente escriturados no prazo de cinco anos. Isso protege o direito creditório do contribuinte, garantindo a neutralidade fiscal e evitando imposições desproporcionais, que inviabilizariam o exercício desse direito em situações fora de seu alcance.
Movimentos estaduais contrários aos contribuintes
Nos últimos tempos, alguns estados, como Ceará e Bahia, têm adotado medidas que restringem a não-cumulatividade do ICMS, impondo prazos de prescrição arbitrários para o aproveitamento de saldos credores e créditos acumulados. No Ceará, a Lei nº 18.665/2023 introduziu, de forma sutil, uma limitação temporal ao estabelecer, em seu artigo 78, que o “direito de utilizar o crédito extingue-se depois de decorridos 5 anos contados da data de emissão do documento”. Essa redação, que deveria tratar apenas da escrituração do crédito, acaba sendo aplicada como prazo para a compensação dos créditos, desvirtuando o contexto original do artigo 23 da Lei Kandir.
Esse desvirtuamento foi agravado pela edição da Norma de Execução 02/2024, que determinou que créditos fiscais de ICMS não utilizados dentro de cinco anos deveriam ser estornados da escrita fiscal, sob pena de multa de 100% do valor do crédito não estornado. Essa interpretação contraria frontalmente o princípio da não-cumulatividade, pois transforma uma limitação administrativa em regra prescritiva sem respaldo na Lei Kandir, que é a norma complementar federal competente para tratar do tema.
Na Bahia, por outro lado, a restrição não ocorreu por meio de alteração legislativa, mas pela utilização de pareceres da Procuradoria Geral do Estado (PGE). Esses pareceres interpretam que o termo “utilização”, constante no artigo 31 da Lei Estadual nº 7.014/96 (similar ao artigo 23 da Lei Kandir), refere-se à compensação do crédito com débitos fiscais e não à sua escrituração. Com base nessa interpretação, o Fisco Estadual tem alegado que créditos vinculados a operações com mais de cinco anos de emissão seriam indevidamente aproveitados pelos contribuintes.
No entanto, a Lei Kandir não estabelece qualquer limitação temporal para o aproveitamento de créditos regularmente escriturados ou homologados. O prazo de cinco anos refere-se apenas à formalização inicial do crédito, ou seja, à escrituração de documentos fiscais idôneos. Assim, as interpretações restritivas defendidas pelos estados e baseadas em normas infraconstitucionais são ilegais e violam a competência exclusiva da Lei Complementar para regular a matéria.
Essas medidas estaduais representam afrontas ao princípio da não-cumulatividade, que é garantido constitucionalmente para evitar a tributação em cascata. A imposição de limites artificiais para a compensação de créditos prejudica a segurança jurídica dos contribuintes e deve ser rechaçada, dado que contraria tanto a Lei Kandir quanto o equilíbrio do sistema tributário nacional.
A reforma tributária e seus impactos
Com a Reforma Tributária, que prevê a extinção do ICMS em 2033, o legislador constitucional garantiu que os saldos credores acumulados poderão ser utilizados pelos contribuintes até o final do período de transição. Caso não sejam totalmente aproveitados, os estados deverão ressarcir esses créditos em moeda, conforme o artigo 134, §6º, inciso III da Constituição. No entanto, esses recentes movimentos de alguns estados, como a imposição de prazos de cinco anos para a liquidação de créditos, reduzem artificialmente o valor que os estados precisariam ressarcir no futuro, ao limitar o direito creditório do contribuinte a esse período.
Além disso, essa restrição temporal favorece o aumento da arrecadação atual dos estados. Com a prescrição dos créditos acumulados, contribuintes que poderiam compensar débitos de ICMS com seus saldos serão obrigados a quitar os débitos com pagamento em espécie, gerando receita adicional para os cofres estaduais. Essa prática, embora beneficie os estados em um cenário de incerteza fiscal devido à transição tributária, contraria o princípio constitucional da não-cumulatividade e compromete os direitos adquiridos pelos contribuintes.
Dessa forma, surge a reflexão: as medidas adotadas pelos estados seriam uma estratégia para evitar o desembolso futuro e aumentar a arrecadação presente, ou simplesmente um equívoco na interpretação da Lei Kandir? Independentemente da resposta, é evidente que essas ações desrespeitam os limites constitucionais e legais, impondo um ônus indevido aos contribuintes e enfraquecendo as bases da não-cumulatividade.