O papel e a responsabilidade dos influencers

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A edição do jornal Valor Econômico do último 22 de março, em reportagem intitulada “CVM mira influenciador ‘analista’”, indica, a partir de entrevista com João Pedro Nascimento, presidente da autarquia, que “a regulação estudada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para os influenciadores não tem o objetivo de limitar a liberdade de expressão, mas de atuar junto aos profissionais que entram no perímetro regulado”.

Dentre os pontos tratados na proposta de regulação da CVM estão (i) requisitos para a caracterização profissional de quem atua como analista de mercado nas redes sociais, (ii) diferenciação entre o que é opinião e o que é recomendação, (iii) supervisão dos criadores de conteúdo pelas instituições que contratam seus serviços, (iv) previsão de obrigação de informação, pelo influenciador, do vínculo comercial e (v) obrigação de identificação de conteúdos patrocinados.

No caso dos influencers de mercado, como a função de analista é regulada, a ideia é que as pessoas que exercem tal papel, mesmo que na informalidade da internet, também teriam que ser certificadas, além de estarem sujeitas à devida transparência e às obrigações que criam desincentivos para a prática de ilícitos no mercado de capitais, tais como a manipulação de mercado e o uso de informações privilegiadas.

Apesar de muito importante, a questão dos influenciadores de mercado é apenas a ponta do iceberg de um mercado muito mais amplo, pujante e promissor. Como explica Tisha James[1], os influenciadores têm o poder de influenciar milhares ou milhões de pessoas, diante de uma conexão mais próxima e emocional com seus seguidores/consumidores, já que suas interações parecem mais genuínas do que as das celebridades tradicionais.

Nos termos dos números apresentados por Elizabeth Porter[2], o mercado de influenciadores tinha previsão para chegar aos 21,3 bilhões de dólares até o final de 2023, havendo análises que apontam o Brasil como líder do mercado[3], em que se estima que o marketing de influência já chegou a 70% das marcas[4].

O grande problema desse mercado é que ele funciona à margem das regulações sobre publicidade e sem as devidas obrigações de transparência, omitindo dos consumidores, seguidores e destinatários dos conteúdos que os comentários ou sugestões dos influencers, longe de serem meramente espontâneos e desinteressados, são pagos, direta ou indiretamente, por anunciantes, tendo claro interesse econômico.

Dessa maneira, muitos desses conteúdos são publicidade travestida de opinião desinteressada, confirmando a tese de Frank Pasquale[5] de que o meio digital cada vez mais embaça a diferença entre quem faz, quem toma e quem finge (makers, takers e fakers). Sob vários aspectos, a ausência de transparência sobre a natureza comercial e econômica que os influencers têm com os produtos que anunciam pode ser considerado não apenas um fingimento, mas também como uma violação aos direitos dos consumidores, notadamente o da proteção contra a publicidade escamoteada ou abusiva.

Não é sem razão que, após um certo tempo em que esse mercado se desenvolveu sem maiores responsabilidades, temos presenciado uma crescente reação, por parte de vários países, a fim de se tentar exigir os devidos deveres e responsabilidades dos influencers e daqueles que contratam seus serviços. E tais iniciativas não têm por objeto apenas os casos de estelionatos, fraudes, infrações regulatórias ou patrocínios indevidos de jogos de azar; na verdade, trata-se de entender a atividade dos influenciadores e disciplinar a sua responsabilidade de forma geral.

A iniciativa mais robusta é a da recente lei francesa 2023-451, de 09 de junho 2023, que disciplina a “influência comercial”, deixando claro que se trata de atividade econômica lucrativa para todos os fins. Além de definir o que é ser influenciador e tratar dos requisitos para os contratos respectivos, a legislação francesa estende aos influencers restrições já existentes para a publicidade tradicional – como as relacionadas a vedações de determinados produtos como nicotina e remédios, dentre outros -, exige obrigações de informação e transparência – como a indicação expressa de se tratar de “publicidade” ou “colaboração comercial” durante a integralidade da promoção – assim como prevê graves consequências para o descumprimento das normas aplicáveis, o que, a depender do caso, pode sujeitar o infrator até mesmo a penas de restrição de liberdade, além de altas multas e da responsabilidade civil solidária entre influenciadores e agentes por danos causados a terceiros na execução do contrato de influência comercial.

Nos Estados Unidos, já há considerável doutrina apontando que, embora as leis americanas exijam que os influenciadores claramente identifiquem os conteúdos pelos quais pelos são pagos, o ambiente das mídias sociais acaba deliberadamente ofuscando as linhas divisórias entre conteúdos pagos e não pagos[6], fenômeno que conta com a leniência da Federal Trade Comission em assegurar o cumprimento de suas próprias normas de disclosure[7].

Para além de infrações regulatórias ou práticas de crimes, dois focos de preocupação têm sido realçados: (i) os efeitos dos influencers sobre as práticas de consumo, inclusive para o fim de equiparar várias de suas ações à publicidade abusiva e também às práticas de concorrência desleal e (ii) as violações às marcas e a outros direitos de propriedade intelectual.

No que diz respeito aos efeitos sobre os consumidores, há autores que mostram que o consumidor médio permanece desatento à natureza fictícia dos influencers, ou pior, à orquestração existente com marcas e anunciantes[8]. Daí a conclusão de que a ausência de transparência sobre tais elementos leva ao engano do consumidor, o que leva à conclusão de que anúncios de influencers sem a apropriada transparência podem ser considerados, por si só, como fraudes aos consumidores. Aliás, haveria três níveis de fraude, que abrangem a ocultação da natureza comercial da relação, a eventual utilização de robôs e o controle por entidades comerciais.

Por motivos semelhantes, há autores que sustentam que a influência sem transparência pode também ser vista como prática de concorrência desleal, até porque os influencers podem ser vistos como verdadeiros traders[9].

Já no que diz respeito à responsabilidade por violações aos direitos de propriedade intelectual, Elizabeth Porter[10] entende que tais obrigações são exigíveis também dos anunciantes, que têm o ônus de assegurar que os influencers cumpram as obrigações de disclosure.

Outros pontos importantes que vêm sendo ressaltados pela literatura específica são que (i) a responsabilização dos influenciadores não altera nem interfere na necessária responsabilidade dos anunciantes, do que decorre a necessidade de obediência a deveres de cuidados recíprocos na relação de influência comercial[11] e (ii) o direito fundamental à liberdade de expressão não protege influenciadores ou anunciantes por conteúdos pagos ou interessados que representem violações às regras que todos os traders, anunciantes ou veículos de mídia precisam obedecer[12].

No Brasil, em que a discussão também está no início, uma das poucas referências mais explícitas sobre a questão se encontra no Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais do CONAR[13], que determina que o conteúdo divulgado por influencers deve ser claramente identificado como publicitário.

De toda sorte, as normas do Código de Defesa do Consumidor, além de protegerem os consumidores contra todo tipo de publicidade enganosa ou abusiva (art. 6º, IV), assim considerada como tal a publicidade que não seja identificada fácil e imediatamente como tal (art. 36, caput).

Daí por que, mesmo na ausência de uma regulação específica, há bons fundamentos para se sustentar que se aplicam, no Brasil, as conclusões a que chegou Maria Camila Molano París[14] diante do direito colombiano:

os influencers precisam cumprir as normas protetivas do consumidor, a fim de que este tome uma decisão de consumo informada e ajustada a realidade;
os influencers precisam declarar a relação que têm com o fabricante do produto ou diretamente com o produto;
os influencers devem assumir as correspondentes responsabilidades de sua atividade econômica em conformidade à sua relação com a titularidade do produto: se o produto for próprio, ele deve ser equiparado ao anunciante; se o produto for de terceiro ele deve ser equiparado a meio de publicidade.

Da mesma maneira, as normas sobre propriedade industrial e concorrência desleal também devem ser aplicadas, sempre que pertinentes.

Entretanto, é fundamental entender que a origem do problema dos influencers é comum a vários outros problemas do meio virtual: a total disfuncionalidade do fluxo informacional que decorre da falta de transparência, o que nos faz pensar sobre instrumentos para assegurar a maior qualidade das informações[15], inclusive para evitar inúmeras práticas enganosas que já se tornaram realidade[16].

Uma coisa é certa: a garantia constitucional da liberdade de expressão nem é absoluta nem pode ser utilizada como escudo para a divulgação de conteúdos pagos ou que possam ser considerados atividade profissional lucrativa[17]. Quem exerce atividade econômica lucrativa precisa assumir as devidas responsabilidades.

[1] JAMES, Tisha. The Real Sponsors of Social Media: How Internet Influencers are Escaping FTC Disclosure Laws. https://kb.osu.edu/server/api/core/bitstreams/130cdea8-9d99-46e9-9381-705644bf0e3f/content

[2] PORTER, Elizabeth. Are Influencers Making a Bad Impression?: Exploring the Consumer Harm of the Influencer Marketing Business (March 31, 2023). CORP. BUS. L. J., Forthcoming, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4526180 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4526180

[3] https://notaalta.espm.br/o-cutuco-do-mestre/brasil-lidera-mercado-de-influencers/

[4] https://www.terra.com.br/economia/marketing-de-influencia-cresce-e-chega-a-70-das-marcas,1a531c2b7aa605a7f26eb9518aa6d63cwr05xfjr.html

[5] PASQUALE, Frank. The Black Box Society. The Secret Algorithms That Control Money and Information. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

[6] HYMAN, David et al. Influencer Marketing on Instagram and TikTok: Entertainment or Deception? Hyman, David A. and Franklyn, David J. and Yang, Leo and Rahmati, Mohammad, Influencer Marketing on Instagram and TikTok: Entertainment or Deception? (April 1, 2024). Arizona State University Sandra Day O’Connor College of Law Legal Studies Research Paper No. 4730850.  https://ssrn.com/abstract=4730850 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4730850

[7] TISHA, James, Op.cit.

[8] MERTENS, Floris; GOETGHEBUER, Julie. Virtual reality, real responsibility. The regulatory landscape for virtual influencers. https://financiallawinstitute.ugent.be/wp-content/uploads/2024/02/2024-02.pdf

[9] MERTENS, Floris; GOETGHEBUER, Julie. Op.cit; HEALY, Jatie. CGI social media influencers and deceptive marketing. 172 Revue Canadienne du Droit de la Concurrence, v. 33, n. 2.

[10] Op.cit.

[11] Dentre os autores que sustentam a responsabilidade cumulativa ou solidária dos anunciantes, encontra,-se HARRIS, Lauryn. Too Little, Too Late: FTC Guidelines on Deceptive and Misleading Endorsements by Social Media Influencers., 62 Howard L.J. 947 (2018-2019); OTERO, Andrea. Intellectual Property Infringement and the Possibility of Influencer Liability. St Thomas Journal of Complex Litigation. V. 8, Spring, 2022.

[12] Dentre os autores que afastam expressamente o direito à liberdade de expressão como escudo para a atuação dos influencers, encontram-se HARRIS, Lauryn, Op.cit., e PARÍS, Maria Camila. Responsabilidad del influenciador digital a luz del estatuto del consumidor colombiano. Revista La propriedad inmaterial, n 41, jan-jun 2021, pp. 157-193.

[13] http://conar.org.br/pdf/CONAR_Guia-de-Publicidade-Influenciadores_2021-03-11.pdf

[14] Op.cit.

[15] Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/pl-das-fake-news-e-a-importancia-da-transparencia-e-responsabilidade-27042022

[16] Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercado-de-reputacao-14092022

[17] Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/regulacao-de-conteudos-em-plataformas-digitais-22032023

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