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Existe um amplo consenso no tabuleiro político nacional em torno do diagnóstico de que o sistema tributário brasileiro é ruim, ressalvadas as discordâncias quanto às soluções propostas. “O pior sistema tributário do mundo”: esta afirmação foi lugar-comum nas audiências públicas parlamentares de discussão da mais recente reforma tributária, que culminou na edição da EC 132/2023. Nestes espaços, dois problemas do sistema foram pontos pacíficos: sua extrema complexidade e o seu caráter marcadamente regressivo.
Sistemas regressivos são caracterizados pela falta de proporcionalidade entre as alíquotas e as bases de cálculo. Ou seja, proporcionalmente, pessoas pobres arcam com maiores encargos tributários do que pessoas ricas. Como a renda de pessoas mais pobres é prioritariamente comprometida no consumo, a escolha por privilegiar a tributação sobre esta base em detrimento da renda e do patrimônio, como acontece no caso brasileiro, é uma marca de regressividade.
Apesar do consenso em torno deste problema fundamental nas audiências públicas da chamada “reforma tributária do consumo”, o público convidado a se manifestar não representava os grupos sociais mais afetados, mas sim o empresariado. Esse é um dos resultados identificados pelo estudo Quem foi quem na reforma tributária?, realizado pelo Observatório Brasileiro do Sistema Tributário.
Ambivalências marcaram todo o processo. Em comparação às discussões que antecederam a aprovação da EC 42/2003, última grande reforma tributária no cenário brasileiro, o processo deliberativo de 2023 foi muito mais diversificado e aberto à participação de atores não-governamentais. Em 2003, 51 pessoas participaram das audiências públicas, mas 60,8% desse total eram atores ligados ao governo. Em 2023, o número de participações saltou para 275 e os atores ligados ao governo passaram a representar apenas 20% desse conjunto. Além disso, enquanto na reforma de 2003 apenas 1 mulher participou do processo, as discussões em 2023 contaram com 67 intervenções de 60 mulheres.
É possível observar, na comparação entre os dois momentos, um movimento de alargamento do campo tributário no país. Um público maior e mais diverso é chamado a participar, de modo que também as temáticas e pautas apresentadas passam a abranger questões antes alijadas do processo deliberativo, como a tributação sobre combustíveis fósseis e demandas relacionadas às especificidades de gênero, raça e classe. O meio institucional tributário brasileiro não se restringe mais a disputas internas às coalizões governamentais e aos representantes de grandes escritórios de advocacia.
Se é fundamental reconhecer essa abertura, muito benéfica para a democracia brasileira, também é importante pontuar as contradições do processo. Como dito anteriormente, a “sociedade” chamada ao processo deliberativo da reforma de 2023 foi predominantemente composta por representantes empresariais (64.1%), entre figuras diretamente empregadas em altos postos em grandes empresas, acadêmicos atuantes em escritórios de advocacia que as representam e lideranças de sindicatos patronais.
A participação de mulheres, ainda que substantivamente maior do que a observada 20 anos atrás, se restringiu a 24.4% do total de intervenções e a apenas 17,4% se considerarmos apenas aquelas feitas por mulheres não integrantes do governo. Outro achado importante refere-se ao fato de que as mulheres chamadas a intervir no processo eram majoritariamente ligadas ao governo ou às universidades, e predominaram somente em discussões relacionadas a aspectos sociais da tributação e a temáticas associadas ao cuidado, saúde e educação. Permanece, portanto, uma evidente divisão de gênero quanto aos temas em discussão, havendo um elo entre temáticas tipicamente consideradas “femininas” e a participação de mulheres.
É relevante apontar outro movimento identificado nas audiências públicas da reforma tributária de 2023. As desigualdades de gênero, raça e classe foram levantadas também nas falas de representantes de diferentes setores empresariais. Contudo, isso se deu em uma lógica de captura das pautas desses grupos com o objetivo de embasar pedidos por isenções fiscais e regimes diferenciados de tributação.
Por vezes, o argumento era o de que a maior parte de pessoas empregadas em determinado setor seriam justamente jovens, pessoas negras e mulheres, cujos salários dependeriam do sucesso econômico corporativo. Em outros momentos, a tese era de que benefícios tributários ao setor seriam fundamentais para garantir a manutenção dos preços dos produtos ou serviços ofertados e, dessa maneira, não prejudicariam os grupos sociais vulneráveis, que seriam os seus principais consumidores. É possível identificar, portanto, um discurso que compatibiliza, por meio de um mecanismo de objetificação e captura, os interesses de grupos politicamente minoritários com interesses de diferentes setores da economia.
A abertura do campo tributário aparece, dessa maneira, como um movimento ainda incompleto. Parte-se de um cenário extremamente fechado e homogêneo, para se chegar a outro, em que novas vozes aparecem, não podendo ser descartadas ou diminuídas em sua importância, mas que permanece distante de um quadro de substantiva pluralidade e efetivo espelhamento da realidade social brasileira.
A “sociedade” chamada a participar permanece incongruentemente masculina, branca e empresarial. Ademais, há que se atentar para o uso objetificado de grupos politicamente minoritários por representantes de diferentes setores da economia e grandes contribuintes, como artifício para embasar seus pedidos por privilégios tributários. Avançamos, mas ainda há muito o que se alcançar em busca da paridade participativa esperada em um país democrático e constitucional.