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“O mundo todo tomou conhecimento do quanto está ameaçada nossa liberdade de expressão e do quanto estamos perto de uma ditadura”, disse o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em comício realizado há dias no Rio de Janeiro. No evento, ele e seus parceiros na aventura autoritária do 8 de janeiro de 2023 assumiram o papel de vítimas do Supremo Tribunal Federal (STF) e criticaram as decisões da corte relativas à tentativa de golpe promovida por seu grupo e que foram apadrinhadas por determinados setores das Forças Armadas.
Na ocasião, além da encenada vitimização, Bolsonaro e sua trupe defenderam a liberdade de expressão e, na esteira do caso Elon Musk, afirmaram ainda que se colocaram do “lado certo” da história, recebendo apoio internacional. Pelo que disse e pelo que fez em seus quatro anos de mandato, sempre afrontando as instituições democráticas e ameaçando o STF, essas suas últimas falas não passaram de uma encenação patética e de um ato imoral de desinformação.
Essa postura faz lembrar o que dizia Hannah Arendt em um importante ensaio publicado há mais de cinco décadas sobre a mentira na política:
“A negação deliberada da verdade dos fatos – isto é, a capacidade de mentir – e a faculdade de mudar os fatos – a capacidade de agir – estão interligadas. Devem sua existência à mesma fonte: imaginação (…). Fatos necessitam de testemunho para sempre lembrados e de testemunhas de confiança para se estabelecerem. Daí decorre que nenhuma afirmação factual pode estar além da dúvida, tão segura e protegida contra ataques. É esta fragilidade que torna o embuste tão fácil até certo ponto e tão tentador. Ele não entra em conflito com a razão, pois as coisas poderiam ser como o mentiroso diz que são. Mentiras são muito mais plausíveis, mais clamantes à razão do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja e espera ouvir. Ele prepara sua história com muito cuidado para consumo público, de modo a torná-la crível”.
A atualidade desses argumentos pode ser ilustrada com base nas desinformações e nas pretensas narrativas jurídicas que Bolsonaro invoca em sua defesa. Ao tentar desqualificar a minuta do golpe como prova contra ele, por exemplo, classificando-a como fake news, alega que o texto “não foi implementado, ficou só no campo das ideias e isso não é crime”. Em oportunidades anteriores, já havia dito que, em vez de golpe, ele poderia – com base no artigo 142 – ter convocado as Forças Armadas para “garantir a ordem”. No entanto, como lembraram juristas respeitados e os próprios ministros do Supremo, esse artigo em momento algum diz que as Forças Armadas têm a prerrogativa de um juízo singular que lhes permita avaliar tensões e conflitos entre os três Poderes e atuar como poder moderador.
Esses juristas também lembraram que as Forças Armadas são instituições e não Poder e que não há qualquer margem para interpretações que permitam seu uso com o objetivo de conter o que os militares bolsonaristas, durante seu mandato, chamavam de “indevidas intromissões” no funcionamento de outros Poderes. Por fim, esses juristas e a corte suprema deixaram claro que o artigo 142 não afirma que as Forças Armadas são a garantia da Constituição – pelo contrário, o artigo 102 deixa claro que o guardião da Carta é o STF.
Uma passagem específica do ensaio de Hannah Arendt parece ter sido escrita para Bolsonaro:
“O mentiroso que consegue enganar com quantas falsidades comuns quiser verá que é impossível enganar com mentiras de princípios. Esta é uma das lições que podiam ter sido aprendidas das experiências totalitárias e da assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira – na capacidade de reescreverem a história para adaptar o passado à linha política do momento presente”.
Alguns ministros do Supremo que conheço já leram e releram esse ensaio e, conscientes de que a ordem constitucional prevê meios para a contenção dos inimigos da democracia, estão fazendo o que lhes cabe e o que deles se espera, aplicando as primeiras condenações aos protagonistas da tentativa de golpe do 8 de janeiro.
Diante da insegurança que reinou no país nos dias seguintes a esse fato e das “omissões injustificadas” e inconsequentes do então procurador-geral da República, Augusto Aras, o Supremo precisou atuar com alguns tons acima daquele com que age em períodos de normalidade. A estratégia funcionou e deu os resultados esperados. Mas, como no plano institucional o pior já passou, o STF deveria agora optar pela prudência – sem deixar de ser firme – para tomar decisões bem fundamentadas, neutralizando desse modo as narrativas oportunistas de que a corte censura a direita, de que o país está vivendo sob uma ditadura do Judiciário e de que o povo é quem detém “o supremo poder de uma nação”.