A nova regra do foro por prerrogativa de função e o caso Brazão

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Como vem sendo noticiado, no último dia 12 de abril o STF formou maioria para modificar seu entendimento sobre o foro por prerrogativa de função. 

Por ocasião do julgamento da questão de ordem da AP 937, em 2018, a corte tinha firmado as seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.”

É desnecessário explicar que o referido julgado operou verdadeira mutação constitucional do art. 53, § 1º, da CF, com redação dada pela EC 35/2001, pelo qual os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o STF. Tampouco é o caso de repetir as críticas e lacunas deixadas pelo entendimento, como as já lançadas aqui e aqui.

Agora o que importa é destacar o conteúdo da nova regra, nos termos propostos pelo ministro relator Gilmar Mendes, conforme seu voto lançado no HC 232627. O caso concreto envolve o atual senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) por fatos que lhe foram imputados quando era deputado federal: a suposta exigência para que os servidores de seu gabinete depositassem 5% de seus vencimentos na conta do partido, sob pena de exoneração (prática conhecida como “rachadinha”). A PGR pediu a instauração do inquérito em 2013.

A defesa alega que o paciente ocupou os cargos de deputado federal (2007/2011 e 2011/2015), vice-governador (2015-2018) e, agora, senador da República (2019/2027), sem solução de continuidade, e que os supostos crimes foram praticados durante o exercício do cargo público e em razão dele. Por conta disso, a competência seria do STF, e não do TRF1 para onde os autos tinham sido remetidos em 2015.

Após fazer um excelente histórico sobre as idas e vindas jurisprudenciais a respeito da prerrogativa de foro no Brasil, o ministro Gilmar Mendes propõe um “singelo” aperfeiçoamento da regra firmada na AP 937-QO: a prerrogativa de foro continua adstrita aos crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados às funções desempenhadas, mas deixa de existir o declínio da competência após o término do mandato, com a prorrogação da competência em todos os casos.

No seu voto, o ministro pontua que mantém suas críticas lançadas em relação ao entendimento firmado na AP 937-QO. Em suas palavras, “a percepção de alguns ministros sobre a inadequação do foro especial não autoriza que sua previsão constitucional seja esvaziada via interpretativa – técnica utilizada em 2018” (p. 7 da minuta de voto). 

Ao mesmo tempo, entretanto, contraditoriamente afirma que sua proposta não pretende suplantar a jurisprudência em vigor, mas apenas aperfeiçoá-la, resgatando a coerência do raciocínio utilizado pela posição majoritária. Mais uma vez em suas palavras: “se a diplomação do parlamentar, sozinha, não justifica a remessa dos autos para os Tribunais, o encerramento do mandato também não constitui razão para o movimento contrário – retorno dos autos para a primeira instância” (p. 8).

De fato, nesses termos, não pareceria haver tanta mudança assim. A proposta conserva os aspectos centrais da AP 937-QO. A nova tese assumiria a seguinte redação: “A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Ocorre que o novo entendimento volta a ampliar o foro (no caso, prorrogando-o), quando o movimento anterior era precisamente para eliminá-lo. 

Basta recordar que a PEC 10/2013 aprovada pelo Senado em 6 de junho de 2017 pretendia extinguir o foro especial por prerrogativa de função em casos de crimes comuns, não só para os parlamentares, mas para todas as autoridades dos três poderes e do Ministério Público. Autuada na Câmara dos Deputados como PEC 333/2017, desde então a matéria aguarda deliberação. É o Congresso Nacional é o locus adequado para esse tipo de decisão, não o STF.

Entre os demais fundamentos apresentados para a subsistência do foro especial mesmo após a cessação das funções estão, ainda: 1) o de que a medida se prestaria à preservação da capacidade de decisão do titular das funções públicas (para que possa agir com destemor e não se iniba de tomar decisões impopulares que o coloquem em apuros no momento pós-mandato), e 2) o de que tribunais colegiados estariam em melhores condições (do que juízes singulares) para resistir a pressões indevidas, seja do próprio acusado, seja dos que atuam contra ele.

O problema desses dois argumentos está em que, na prática, implica a reescrita do art. 102 da CF, ampliando a competência do STF para julgar todos os “ex”: o ex-presidente da República, o ex-vice-presidente da República, os ex-membros do Congresso Nacional, o ex-PGR, etc. Ocorre que não é isso que está no texto constitucional.

O ministro avança citando orientações centenárias para justificar sua proposta. Cita Alberto Zacharias Toron, cujo texto denuncia que o cancelamento da Súmula 394 no passado se deveu não a razões jurídicas, mas a questões pragmáticas, notadamente o número de ações penais em trâmite no STF. Afirma que o tribunal abandonou a interpretação mais correta da prerrogativa de foro a partir de argumentos equivocados. Mas, novamente, pergunta-se: Será que um erro justifica o outro?

Nota-se o empenho do ministro relator em defender que o novo entendimento estaria mais alinhado com a finalidade do foro por prerrogativa de função, e que o entendimento atual (de remeter os autos à primeira instância no curso da investigação ou da ação penal) é contraproducente, porque mantém aberta a brecha para o “elevador processual” no interesse (e por ato voluntário) do acusado para retardar a instrução processual.

No voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso, nota-se o mesmo esforço insistindo que a nova tese não revisa a AP 937-QO, mas, sim, o Inq 687-QO, como se esse detalhe fizesse muita diferença.

Pois bem. Essa “releitura” do foro por prerrogativa de função dos parlamentares não pode deixar de ser analisada com outro entendimento do STF: a prisão preventiva do deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ) determinada no âmbito do Inq 4.954, que corre em sigilo, mas cuja decisão foi divulgada no site do próprio STF. Dois dias após sua edição, a decisão foi ratificada pelos membros da Primeira Turma.

A construção hermenêutica que vem viabilizando a prisão preventiva de parlamentares já foi criticada em texto passado, a cuja leitura se remete. Aqui, o caso é só de pontuar a consolidação de mais uma mutação constitucional, agora do art. 53, § 2º, da CF, cujo texto prevê que, desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Pela redação constitucional, os congressistas somente podem ser presos em flagrante e por crimes inafiançáveis.

A decisão que determinou a prisão preventiva, entretanto, recorreu novamente ao malabarismo (adotado no caso Delcídio do Amaral – AC 4.039) de que a presença de requisitos autorizadores da prisão preventiva (no caso, o risco de obstrução da justiça) afastaria a afiançabilidade do crime in abstracto, tornando-o inafiançável in concreto (vide páginas 17 e seguintes). A mesma tese foi utilizada no caso Daniel Silveira (Inq 4.781). E alguns dos problemas desse caso anterior se reproduzem no atual caso Brazão.

Por exemplo, a própria questão do foro. Como se acaba de ver, desde o julgamento da AP 937-QO, o STF só tem competência para o julgamento de parlamentares por crimes praticados durante exercício do mandato e em razão dele. No caso Daniel Silveira, afastou-se a imunidade material sob o argumento de que esta somente incide sobre manifestações que guardem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão dessa (opiniões, palavras e votos in officio ou propter officium). 

Com isso, sem que o discurso esteja relacionado às funções, faleceria a competência do STF. Mas, como sabido, o julgamento da AP 1.044 foi adiante, a despeito da incompatibilidade com o entendimento da AP 937-QO sobre o foro.

Da mesma forma agora, no caso Brazão, o suposto homicídio teria sido praticado antes da sua diplomação como deputado federal e tanto esse crime, quanto os eventuais atos de obstrução de justiça não guardariam relação com o mandato. Portanto, o STF não teria competência para decidir o pedido de prisão. 

É verdade que o atual caso concreto – envolvendo um crime bárbaro, com forte comoção pública, somado à gravidade da acusação de o parlamentar ser um dos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) em 2018 – é péssimo para discutir o assunto. Não à toa a prisão preventiva foi mantida pelo plenário da Câmara dos Deputados com 277 votos contra 129 votos pelo relaxamento e 28 abstenções. Foram 20 votos a mais que o necessário, uma maioria que, embora não tão folgada, continua sendo maioria.

O relator da análise da prisão, o deputado Darci Matos (PSD-SC), chegou a afirmar: “A nosso ver, deve-se entender como crimes inafiançáveis apenas quando considerados in abstracto, em face de definição constitucional e legal, de que são exemplos o racismo, a tortura, o tráfico, o terrorismo, a ação de grupos armados, aqueles contra a ordem constitucional e o Estado Democrático e os hediondos e equiparados.” Mais adiante, pontuou: “Sem dúvida alguma, após esse episódio pontual, nós temos que aprofundar o debate sobre as prerrogativas dos parlamentares”.

Tomara que não seja tarde demais. Na máxima do justice Oliver Wendell Holmes, “Great cases like hard cases make bad law” (grandes casos, como casos difíceis, fazem má lei). As peculiaridades dos casos Daniel Silveira e Brazão certamente distorcem um pouco os julgamentos. Mas o caso se vai, enquanto o precedente fica e certamente vai servir de fundamento para futuros casos de prisões preventivas de parlamentares.

Só fica uma pergunta: até quando o STF vai continuar fazendo releituras das prerrogativas parlamentares?

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