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Há séria imprecisão técnica a respeito dos tratados internacionais no texto do Anteprojeto de Revisão do Código Civil (ARCC), as quais podem levar a problemas sérios de aplicação ou, no mínimo, gerar confusões desnecessárias. Nesse sentido, o presente artigo tem, tão somente, o objetivo de alertar para um problema passível de tratamento prévio à eventual aprovação das alterações ora propostas.
Não se trata, portanto, de uma crítica geral ou integral ao ARCC. É apenas uma reflexão sobre como se veem os tratados internacionais a partir da ótica do instrumento sob análise. Cuida-se, portanto, apenas das disposições propostas para o Artigo 1º, Artigo 11, § 1º, Artigo 732-A e a três disposições, não numeradas, do Livro sobre Direito Civil Digital.
Nessas disposições, bem como na justificação, os documentos internacionais em questão são quase sempre referidos como “tratados internacionais dos quais o País é signatário”. Optou-se, portanto, por conceito diverso daquele empregado no § 2º do Artigo 5º da Constituição Federal: “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. As duas expressões dizem a mesma coisa?
Embora no uso vulgar da linguagem encontre-se sinonímia, em termos técnicos o Estado “signatário” não se confunde com o “parte”. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT)[1], onde é possível encontrar definição normativa de termos já consagrados pelo costume e pela doutrina, explica, em seu Artigo 1, f, que a Parte é “um Estado que consentiu em se obrigar pelo tratado e em relação ao qual este esteja em vigor”.
Essa mesma CVDT não traz uma definição de “signatário”. Seu sentido, porém, é inequivocamente reservado ao Estado que assinou um tratado. Cabe esclarecer que, na doutrina internacional, bem como no texto da Convenção, o termo “assinatura”[2] se reserva estritamente ao ato de lançar em cópia original do instrumento que corporifica o tratado, de próprio punho, escritos ou sinais distintivos da identidade da pessoa natural idônea para tanto. Outros meios de identificação, como selos e certificações eletrônicas, podem ser usados se houver aceitação expressa dos Estados envolvidos em relação aos efeitos desejados.
As funções da assinatura são, principalmente, a de autenticação do texto (CVDT, Artigo 10) e manifestação do consentimento em obrigar-se por um tratado (CVDT, Artigo 11). Ambas podem ser desempenhadas por outros meios. A forma mais comum de autenticação do instrumento dos tratados internacionais é, certamente, a assinatura. Quanto ao consentimento para se obrigar por um tratado, porém, a situação é diversa: em tratados bilaterais ainda é comum a manifestação do consentimento definitivo por meio da assinatura, o que é bastante mais raro em tratados multilaterais. Não se presume, sequer juris tantum, que o lançamento da assinatura implique consentimento definitivo.
Assim, desde logo, a expressão “Estado signatário” é clara no Direito internacional, a despeito da ambiguidade de seus efeitos, preservada na CVDT. O signatário pode (1) apenas ter autenticado um texto ou (2) ter manifestado o consentimento definitivo por meio da assinatura. Nenhuma dessas circunstâncias implica, per se, o vigor do tratado para o Estado signatário. Nem o vigor internacional e, muito menos, o vigor interno.
Cabe, aqui, um breve esclarecimento: o vigor internacional não coincide com o vigor interno, embora possa ser considerado como uma condição deste. Suas datas podem ser diferentes, como no caso da própria CVDT, e é preciso um esforço consciente para que, eventualmente, coincidam. Seus efeitos também são diferentes: um cria deveres e obrigações internacionais para o Estado, o outro implica a vinculação das pessoas de Direito interno e a aplicação pelos órgãos oficiais, particularmente pelos do Poder Judiciário.
Como se viu, a expressão “Estado parte” é aquela reservada às circunstâncias em que não apenas o Estado deu seu consentimento definitivo em se obrigar, mas nas quais o tratado se encontra em vigor internacional. Além disso, não é necessário ser signatário para ser parte de um tratado: o Estado pode aderir, ou seja, manifestar o consentimento em relação a um tratado que não assinou e seja aberto a adesões. Basta sua entrada em vigor para o aderente e este se transforma em parte, sem jamais haver assinado instrumento algum.
Resulta desses breves esclarecimentos a impossibilidade de imaginar a intenção da Comissão de Juristas como sendo, efetivamente, a de se referir a instrumentos assinados, aos quais eventualmente falte (1) consentimento definitivo do Brasil, a ser expresso por meio de instrumento de ratificação, como ocorre na imensa maioria dos tratados multilaterais ou, (2) vigor internacional geral do tratado, ou (3) vigor para o Brasil do tratado. Ao que parece a melhor referência seria a tratados de que o Brasil seja parte. Ao que tudo indica, a noção de Estado parte é bem mais adequada para o texto legal do que a ora propugnada.
Não deixa de ser importante, além disso, refletir sobre se, diferentemente do que estabelece a CF em seu Artigo 5º, § 2º, a intenção do Anteprojeto não seria a de se referir aos tratados que se encontram em vigor no Brasil e não aos que, estando em vigor para o Brasil, ainda não foram incorporados à Ordem interna por meio de decreto de promulgação ou foram revogados internamente antes da efetivação da denúncia. Observe-se que a Constituição tem o condão de estabelecer regras sobre as relações exteriores do Brasil e, nesse sentido, pode se referir às Partes de um tratado em sentido específico: o da verificação do vigor internacional. Isso não parece ser função do Código Civil. Talvez seja mais lógico e razoável falar em “tratados internacionais em vigor no Brasil”.
Essa consideração, aliás, suscita uma questão adicional sobre o Parágrafo único do Artigo 1º do ARCC: o que se pretendeu dizer com a expressão “personalidade internacional”? Essa expressão tem um sentido muito claro no Direito Internacional Público, referindo-se à “suscetibilidade (…) de ser titular de direitos e estar sujeito a deveres decorrentes (…) de normas de Direito Internacional”[3]. Ora, não existe qualquer razão para que a Ordem jurídica internacional aceite leis internas brasileiras como fontes formais ou materiais; esse tipo de norma, por óbvio, não consta do rol de fontes descrito no Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Não é muito claro, pelo menos do ponto de vista do Direito internacional, o que a Comissão de Juristas desejava dizer por meio dessa expressão, o que é certo é a impossibilidade de considerar a norma por ela expressa como fonte de Direito internacional e, portanto, inidônea para estabelecer quem tem ou não tem personalidade jurídica internacional.
Desse modo, não sem expressar o respeito e admiração pelos membros da Comissão de Juristas do ARCC, parece haver a utilização de expressão inadequada a respeito dos tratados internacionais, sendo muito melhor se falar em “tratados de que o Brasil é parte” ou “tratados em vigor no Brasil”, dependendo de quais sejam os objetos desejados.
[1] A Covenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entrou em vigor para o Brasil em 25 de outubro de 2009, ou seja, 30 dias após a entrega do instrumento de ratificação, ocorrida aos 25 de setembro de 2009. Entrou em vigor no Brasil aos 15 de dezembro de 2009, data da publicação do Decreto 7.03, de 14 de dezembro de 2009.
[2] Interessante lembrar que os textos oficiais da CVDT em espanhol, inglês e francês utiliza os termos “firma”, “signature” e “signature”, respectivamente.
[3] DUARTE, Maria Luísa. Personalidade internacional. VICENTE, Dário Moura et al. (Orgs.) Enciclopédia luso-brasileira de Direito Internacional. Alfagide: D. Quixote, 2023. P. 899.