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O Direito, como expressão da sociedade, deve acompanhar as transformações de seu tempo e se adaptar a ele. O sistema jurídico de um Estado será eficaz à medida que refletir as demandas da sociedade, suas relações sociais, seus mecanismos de poder legitimados, essencialmente sua natureza, relações jurídicas e cultura.
Embora negligencie esta condição desde sua independência, o Brasil é, essencialmente, um Estado marítimo com uma das maiores costas do mundo, além de uma profunda relação histórica com o mar que centraliza 90% de seu comércio internacional. Relação que se redimensionou ainda mais com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que reconheceu legalmente a soberania brasileira sobre a Plataforma Continental e a Zona Econômica Exclusiva, posição reforçada com a proposta de extensão da Plataforma Continental e o disciplinamento jurídico da “Amazônia Azul”.
O patrimônio marítimo engloba uma série de atividades econômicas que movimentam bilhões em riquezas, com impacto direto na economia brasileira e nos negócios: exploração de petróleo offshore; óleo e gás; navegação e transporte de cargas; construção naval; comunicação por cabos e dutos submarinos; setor portuário; exportação de commodities; comércio; turismo; emprego; recursos genéticos e propriedade intelectual; produção de energia; alimentação; tecnologia; ciência; segurança; defesa; derivando uma série de negócios. Não só isso, existem custos sociais, em razão de diferentes demandas da sociedade contemporânea que envolvem instâncias de decisão e governança ligadas principalmente às mudanças climáticas, poluição marinha e proteção do meio ambiente, combate à criminalidade no mar, entre outras questões fundamentais de Direitos Humanos.
Numa interpretação lógica, todo esse contingente econômico demanda um aparato jurídico apropriado, atualizado, sistematizado, claro e acessível aos atores centrais para que tenham segurança em seus negócios jurídicos, proteção e segurança, para que possam regular de forma justa as relações marítimas nesse espaço, mas não é o que acontece.
Diferentemente de outros Estados marítimos, como Estados Unidos, Inglaterra, China, França, Japão, Grécia e Noruega, para citar alguns, o Brasil, ao longo de sua história, nunca teve uma legislação marítima autônoma e sistematizada, tampouco a matéria foi estudada de forma programática nas faculdades de Direito como disciplina fundamental obrigatória nas grades curriculares.
O Direito Marítimo sempre foi tratado como um apêndice do Direito Comercial, em um dos capítulos de sua normatização, ostentando hoje o inútil título de ser a única parte do Código Comercial de 1850 que permanece em vigor. O que parece algo positivo é, na realidade, resultado de descaso com a matéria, e representa um atraso vergonhoso para o Estado brasileiro.
A legislação marítima em vigor já foi suplantada pelo tempo com o surgimento de novos mecanismos tecnológicos para a realização dos negócios marítimos, comércio internacional, preocupações ambientais e sistema de armazenamento e transporte, valendo destacar: a internacionalização de regras a partir de instituições internacionais destinadas a uniformizar práticas e padrões globais como a Solas e Marpol, entre outras; regulamentação de segurança e seguros o que inclui normas para construção de navios, manutenção e operações para garantir segurança no mar, bem como o desenvolvimento de sistemas complexos que ajudam a gerenciar os riscos financeiros associados aos transportes marítimos; Direito Ambiental Marítimo e a proteção de ecossistemas marinhos; combate à pirataria, tráfico de drogas e armas; segurança marítima; tecnologia e automação; arbitragem e resolução de disputas; Direito dos trabalhadores, além da padronização de armazenamento, digitalização e rastreamento dos contêineres, que ampliaram e complexibilizaram as relações contratuais no transporte de carga; entre outros múltiplos temas que demonstram que é preciso e urgente discutir o Direito Marítimo com seriedade e coragem.
A propósito, é importante destacar que o Direito Marítimo tem uma epistemologia própria, mesmo sendo decorrente de negócios e contratos, tem sujeitos, nomenclaturas, denominações, conceitos, processos e procedimentos próprios, que o distancia de qualquer outro ramo do Direito, embora dialogue com eles.
A legislação brasileira que trata do Direito Marítimo é um compilado de leis, decretos e portarias, tratados incorporados, que leva a um sistema confuso e pouco seguro e absolutamente desorganizado. Isso pode ser constatado nos movimentos legislativos recentes, temos um código defasado, suplantado pela realidade, com um catálogo fragmentado de legislações.
Recentemente, foi elaborado um novo projeto do código comercial que manteve o Direito Marítimo como um apêndice sem importância, sem que houvesse uma discussão aprofundada com a sociedade e envolvimento direto do setor marítimo.
Foi aprovada a “BR do Mar” com inovações no setor de navegação e transporte de cargas como uma norma autônoma cheia de remendos e contradições. Há pouco tempo, o Congresso instituiu uma comissão para regular o setor portuário e todos os dias são aprovadas normativas administrativas emitidas pela Marinha, as chamadas “Normam” e, ainda, várias leis modelos da IMO estão por ser recepcionadas como decreto.
Não obstante a ineficácia de tais iniciativas, todos esses movimentos legislativos revelam que o tema e os múltiplos setores do mar têm reclamado uma necessária atualização da legislação brasileira, mas a discussão de temas esparsos, sem uma sistematização coerente envolvendo todos os múltiplos atores que atuam no setor marítimo, leva à confusão jurídica com dispositivos de diferentes níveis e objetivos, se chocando, criando conflitos de legislação e lacunas interpretativas que trazem insegurança para investidores e negócios internacionais e levam a um sistema absolutamente disfuncional para seus operadores.
Este anacronismo legislativo não só compromete a eficiência e a segurança das operações marítimas como também coloca o Brasil em desvantagem competitiva no cenário internacional.
É imperiosa uma legislação marítima autônoma para o Brasil. O Congresso apoiado e motivado por aqueles que trabalham com o setor marítimo, deveria criar uma comissão de alto nível com um plano de trabalho a longo prazo, para buscar a sistematização de uma legislação marítima autônoma, que seja resultado de um amplo debate nacional envolvendo a sociedade, maritimistas, comunidades, Estados e municípios, setor privado e econômico, universidades, com o objetivo de criar um todo coerente uma “lex marítima” de vanguarda que corresponda à dimensão e à natureza jurídica do país e lhe permita não apenas modernizar suas operações marítimas, mas também posicionar-se como líderes no comércio e negócios internacionais marítimos, repercutindo no desenvolvimento do setor, gerando desenvolvimento econômico e social.
Recentemente, na Faculdade de Direito da USP, a comunidade jurídica marítima brasileira concordou sobre a necessidade de aprimorar os debates sobre a sistematização de uma legislação marítima autônoma para o país, tendo sido lançado um movimento para ampliar e amadurecer o debate e sensibilizar as autoridades a partir da realização de seminários, com a abertura de discussão sobre o tema.
Pensar estrategicamente o Estado brasileiro envolve a discussão acerca das estratégias de governança do mar, e a necessidade de uma legislação marítima brasileira autônoma se acentua em face dos desafios contemporâneos impostos pela globalização e pelas específicas demandas do comércio e dos negócios internacionais.
O Direito Marítimo, por sua natureza intrincada e sua epistemologia própria, requer uma abordagem especializada que o distingue de outras áreas do Direito. A adoção de uma lei marítima autônoma no Brasil representaria um reconhecimento da importância estratégica deste setor, corrigindo equívocos históricos e posicionando o Brasil como um player proeminente no comércio internacional.