Planejamento familiar é política pública

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O princípio da liberdade familiar estabelece o arbítrio quanto ao modelo de família, dentre os diversos existentes, que o indivíduo irá escolher para atender à sua realização pessoal[1].

Dessa forma, embora não seja possível a intervenção estatal nas escolhas individuais que envolvem à composição familiar, de forma expressa, o artigo 226, §7° da Constituição Federal[2] dispõe que cabe ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para que as pessoas concretizem o seu plano familiar.

Nesse sentido, o planejamento familiar torna-se uma pauta de política pública que deve respeitar os direitos individuais e garantir a constituição de famílias em suas diversas espécies[3].

Para um casal composto por duas mulheres, o plano para ter filhos pode muitas das vezes ser concretizado por meio dos métodos de reprodução assistida[4].

Essa possibilidade é recente e foi regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) apenas em 2013[5], após o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar[6].

Contudo, o acesso às técnicas de reprodução assistida por casais homoafetivos femininos, além de novo, por vezes torna-se economicamente inviável, em razão do alto preço para custear o procedimento[7].

Com o escopo de efetivar o já mencionado artigo 226, §7° da Constituição Federal, a Lei 9.263/1996, que trata sobre planejamento familiar, estabelece em seu artigo 9°[8] que serão ofertados todos os métodos e técnicas de concepção aos indivíduos com o intuito de que estes concretizem o seu plano familiar.

Por conseguinte, a Portaria 426/2005 do Ministério da Saúde estabeleceu a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida. Dessa forma, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a ofertar meios para a realização de técnicas de reprodução assistida.

Logo, casais homoafetivos femininos, em nome do princípio da liberdade familiar, também devem ter acesso aos recursos oferecidos pelo Estado para efetivar a dupla maternidade.

Todavia, no Brasil, há apenas 181 Centros de Reprodução Humana Assistida (CRHAs)[9] e somente 10 oferecem tratamento pelo SUS.

Vale mencionar que, mesmo nos CRHAs vinculados ao SUS, o tratamento pode não ser totalmente gratuito, já que muitas das vezes o casal tem que gastar com locomoção, exames e medicamentos[10]. Não obstante, há uma fila de espera que se demonstra longa. Fatos como esses geram limitações para a concretização do plano familiar de casais homoafetivos.

Mediante a isso, muitos casais compostos por mulheres acabam recorrendo à prática da inseminação caseira que, além de acarretar a possibilidade de transmissão de doenças graves que poderão afetar a saúde da mãe e do bebê[11], implica em dificuldades no momento da inserção do nome da mãe não gestante na certidão de nascimento[12], tendo em vista a falta da declaração de responsável técnico de clínica de reprodução, conforme dispõe o artigo 513, inciso II, do Provimento 149 de 30/08/2023 do CNJ[13].

Acerca desse fato, menciona-se que a questão deve considerar, ainda, um viés de saúde para casais homoafetivos femininos, já que estes, em razão da falta de recursos financeiros e amparo estatal, utilizam-se de práticas alternativas para engravidar, que podem trazer consequências negativas à saúde da mulher e da criança.

Portanto, garantir a realização do procedimento integral e gratuito de reprodução assistida para mulheres que desejam exercer a dupla maternidade, significa cumprir também o disposto no artigo 196 da Constituição Federal[14], uma vez que deve o Estado estabelecer políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerando os ditames constitucionais que envolvem o planejamento familiar, já entendeu que o emprego das técnicas de reprodução assistida deve ser feito de forma integral pelo Estado.[15]

Deve, portanto, o Estado se atentar para o planejamento familiar como uma real política pública, a fim de atender às disposições constitucionais acerca do tema, oferecendo meios realmente efetivos para que casais homoafetivos femininos possam exercer a dupla maternidade, com o objetivo de garantir a pluralidade familiar, além de preservar questões que envolvem a saúde da mulher e do bebê.

[1] LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v.5. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 33. E-book. ISBN 9786553628250. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553628250/. Acesso em: 18 abr. 2024.

[2] Art. 226, §7°, Constituição Federal 1988: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

[3] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 381. E-book. ISBN 9786559648016. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559648016/. Acesso em: 18 abr. 2024.

[4] As técnicas de reprodução assistida são utilizadas para gerar vida, independentemente do ato sexual, por intermédio de método científico, artificial ou técnico, quando há dificuldade ou impossibilidade de um ou do par de gerar um filho. In: DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15. Ed. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 227.

[5] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Novas regras de reprodução assistida destacam saúde da mulher e direitos reprodutivos para todos. Conselho Federal de Medicina, 08 de março de 2013. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/resolucao-de-reproducao-assistida/. Acesso em: 18 abr. 2024.

[6] ADI nº 4.277, STF e ADPF nº 132, STF.

[7] LEVASIER, Luana. Fertilização in vitro: confira os custos do procedimento e como é feito. Estadão, 07 de janeiro de 2023. Disponível em: https://einvestidor.estadao.com.br/colunas/quanto-custa/fertilizacao-in-vitro-custos/. Acesso em: 18 de abr. 2024

[8] Art. 9°, Lei 9.263/1996: “Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”.

[9] BRASIL. Ministério da Saúde. Divulgado relatório sobre fertilização in vitro no país em 2020 e 2021. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/divulgado-relatorio-sobre-fertilizacao-in-vitro-no-pais-em-2020-e-2021. Acesso em: 18 de abr. 2024.

[10] REPRODUÇÃO assistida: a esperança dada pelo SUS para quem quer engravidar. Estado de Minas, 15 de maio de 2023. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/saude-e-bem-viver/2023/05/15/interna_bem_viver,1493837/reproducao-assistida-a-esperanca-dada-pelo-sus-para-quem-quer-engravidar.shtml#:~:text=Destes%20centros%2C%20somente%20em%20quatro,Hospital%20Materno%20Infantil%20de%20Bras%C3%ADlia. Acesso em: 18 de abr. 2024.

[11] BRASIL. Ministério da Saúde. Inseminação artificial caseira: riscos e cuidados. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2018/inseminacao-artificial-caseira-riscos-e-cuidados. Acesso em: 18 de abr. 2024.

[12] O reconhecimento da dupla maternidade nesses casos deve ser feito de forma judicial.

[13] Art. 513, II, Provimento nº 149 de 30/08/2023 do CNJ: “Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários”.

[14] Art. 196, Constituição Federal 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

[15] REsp 1617970 / RJ, STJ

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