Os riscos do semipresidencialismo de facto

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Com a tentativa do Legislativo de se apropriar de determinadas prerrogativas do Executivo em matéria de Orçamento e pagamento de emendas propostas por parlamentares, como ficará a qualidade dos investimentos e gastos públicos no país? A iniciativa recalibrará o equilíbrio entre os Poderes, fortalecendo a democracia, como afirmam as lideranças políticas no Senado e na Câmara dos Deputados? Ou o multipartidarismo que fragmenta a representação política no Congresso acabará tendo como consequência o esvaziamento do poder de agenda do presidente da República, dificultando assim a governabilidade do país?

A discussão não é nova. Quando os militares voltaram para os quartéis, depois de duas décadas de governos ilegítimos e centralizadores, e a democracia foi restabelecida, prevaleceu na Assembleia Constituinte a ideia de que o sistema federativo deveria ser mais descentralizado, com os entes subnacionais passando a gozar de maior autonomia política, financeira e administrativa. O aumento do campo de ação e decisão dos municípios, bem como o fortalecimento de suas respectivas máquinas, às custas de transferências constitucionais da União, que são a principal fonte de receita da maioria dos governos locais, abriria caminho para a aproximação dos cidadãos com os governos municipais – este foi o argumento que prevaleceu à época da promulgação da então chamada “Constituição cidadã”.

Os resultados, contudo, deixaram a desejar. Ao gerar um sistema de competências concorrentes na gestão pública e na oferta de serviços nas áreas de saúde, educação, assistência social e transporte público, em centenas de municípios de pequeno porte e econômica e administrativamente frágeis a redefinição das funções das esferas de governo pecou pela falta de uma coordenação eficiente. A ausência de integração administrativa nas esferas subnacionais levou a uma indefinição de responsabilidades. A triplicação de esforços acarretou excessivos aumentos de gastos com atividades-meio em detrimento das atividades-fim. Na medida em que o mandonismo municipal e estadual acabou ficando sob controle de uma política paroquial e de uma política estadual de feições oligárquicas, a representatividade do processo legislativo também foi sendo progressivamente comprometida.

O resultado foi a conversão de muitos governos subnacionais em amontoado de feudos controlados por facções políticas. Cada uma delas passou a apropriar recursos públicos para suas clientelas e a implementar projetos demagógicos, com o objetivo de garantir manter o controle do poder local e de assegurar a reeleição de seus membros nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Nas cinco regiões do país, muitas prefeituras converteram-se em poderes sem objetivos de médio e longo prazo, sem políticas públicas estruturantes e sem obras e ações concebidas e promovidas em função de prioridades da população. Ao mesmo tempo, uma fragmentação partidária e o alto grau de heterogeneidade na formação das bases de sustentação parlamentar do governo começaram a minar a funcionalidade do chamado presidencialismo de coalizão.

Com o tempo, ficou claro que esse sistema federativo descentralizado e democrático previsto pela Constituição e esse tipo de presidencialismo pragmático fundado na barganha por cargos públicos entre o chefe do Executivo federal e líderes partidários ficou muito aquém do desejado. Também deu ensejo para que, apesar de as normas constitucionais assegurarem a descentralização da execução das políticas públicas nos municípios, a autoridade para iniciativas legislativas da União em matéria orçamentária e pagamento de emendas parlamentares fosse ampliada. Ou seja, invocando eficiência e maximização na aplicação de recursos escassos, a burocracia federal passou a defender que o poder regulatório da União sobre os entes subnacionais fosse aumentado, permitindo-lhe condicionar as transferências constitucionais – especialmente aos municípios – à imposição de determinados critérios técnicos.

Apoiada por partidos fisiológicos e liderada pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), a reação do Congresso foi justificada sob três argumentos: (i) o de que o Orçamento da União é de “todos os brasileiros”; (ii) o de que a “burocracia de Brasília que não gasta sola de sapato percorrendo municípios do país”; e (iii) o de que, se quiser permanecer no cargo sem o risco de sofrer um processo de impeachment, o presidente da República passou com o tempo a depender mais de acordos e concessões de fatias do poder do que a simples entrega de cargos públicos a partidos aliados, como ocorreu nos governos FHC 1 e 2 e Lula 1 e 2).

Em outras palavras, de um lado o presidente da República agora tem de aceitar uma drástica redução da prerrogativa de contingenciar e liberar recursos, inclusive de emendas parlamentares. E, de outro lado, tem de se render às demandas por maior autonomia dos entes subnacionais com relação à União, em matéria de transferências constitucionais.

É aí que está o perigo para o futuro do país. Afinal, duas coisas somadas significam diminuição do poder de agenda da Presidência da República, o que leva à substituição daquele presidencialismo baseado em coalizões que foram ficando cada vez mais heterogêneas e sem fundamento programático na primeira década do século 21 por um sistema de semiparlamentarismo de facto – e jamais de jure – que ganhou seus contornos no final da década de 2010.

Evidentemente, as desigualdades econômicas, sociais e culturais locais exigem capacidade e eficiência dos governos municipais para formular programas adequados à nossa heterogeneidade territorial. Mas há um problema: por mais que isso demande um sistema federativo eficiente, o risco de perda do poder de agenda do presidente da República em matéria orçamentária e de formulação de políticas públicas estruturantes não pode minar as condições para que o país discuta as funções do governo federal – e, por tabela, seu próprio futuro?

Para se ter ideia da importância dessa indagação, o montante das emendas individuais, que foi de R$ 3,7 bilhões em 2015, chegou a R$ 22 bilhões, em 2023 – um volume tão grande que não dá para saber ao certo como esse dinheiro está sendo gasto, onde está sendo gasto, se os projetos têm boa qualidade e se seus resultados são efetivos e favorecem o interesse público.

Além disso, com o declínio de sua autoridade para examinar o mérito dos gastos feitos com base nesses recursos e com a progressiva perda do poder de agenda do presidente da República nesse semipresidencialismo de facto, de que modo evitar o esvaziamento da própria ideia de Estado, das noções de planejamento e estratégia que são essenciais para que o país possa definir objetivos a longo prazo e da percepção das condições mínimas indispensáveis a qualquer projeto nacional de longo alcance? Por fim, de que modo preservar a ideia de responsabilidade, a noção de direitos, as funções de planejamento e as garantias das condições mínimas de operação da sociedade?

Essas indagações dão a medida dos problemas causados pela ofensiva do Legislativo sobre o Executivo, em matéria orçamentária, bem como da hipocrisia do deputado Arthur Lira ao tentar justificá-la. Sem uma boa governança federativa e sem uma eficiente articulação intergovernamental, todos perdem. Enquanto no âmbito do poder local seus controladores se apropriam dos recursos públicos conforme seus interesses privados e seus interesses políticos paroquiais, o que perpetua um atraso social e econômico secular, no âmbito do poder nacional seus dirigentes não têm a força necessária para formular um projeto de futuro para o país.

Nesse sentido, caso Lira e as bancadas fisiológicas que o apoiam tenham sucesso em sua ofensiva para se apropriar de determinadas prerrogativas do Executivo em matéria orçamentária, o semiparlamentarismo de facto poderá ter efeitos trágicos para as próximas gerações, independentemente das cidades em que vivam.

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