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Em meados de fevereiro, foi veiculado na imprensa um vídeo que mostra uma abordagem controversa da polícia na cidade de Porto Alegre. No episódio, um grupo de policiais militares chega em frente a um condomínio no bairro de Rio Branco e se depara com o que parece ser uma briga entre dois homens. Um deles, um homem branco e sem camisa, porta uma arma branca em suas mãos. Ao chegarem no local e sem muitas informações sobre a ocorrência, os policiais optam por algemar o outro homem envolvido na situação, um homem negro, que afirma ter sido alvo de uma tentativa de homicídio.[1]
Em um outro registro do episódio, é possível ver que ambos os envolvidos foram levados em flagrante para a delegacia: enquanto o homem branco é conduzido no banco traseiro da viatura, o homem negro, vítima da situação, foi jogado no porta-malas de um camburão.
Momentos depois do vídeo tomar a internet, vieram as críticas sobre o viés potencialmente racista da abordagem policial. Por que um homem negro estaria sendo detido mesmo quando parece ser a vítima da situação? Qual a explicação para os policiais militares mostrarem tanta compreensão em relação ao agressor branco, que estava armado com uma faca, ao chegarem ao local da ocorrência?
Essas são perguntas que, em certa medida, têm sido debatidas no âmbito das ciências jurídicas e sociais, revelando a profunda repercussão do racismo junto ao sistema brasileiro de segurança pública.[2]
O caso, infelizmente, não é isolado. As diversas denúncias de abordagem policial violenta contra pessoas negras ilustram como a discriminação racial é parte constitutiva da atuação das burocracias brasileiras. Mas o atravessamento de vieses de discriminação na atuação da burocracia não é um uma exclusividade da atuação da polícia. É um fenômeno que está presente nas mais diversas interações entre a população e os profissionais denominados burocratas em nível de rua[3], como policiais, professores, assistentes sociais e profissionais da saúde.[4]
O viés discriminatório baseado em raça emerge como uma manifestação do racismo institucional que, conforme explicado por Silvio de Almeida, se origina no funcionamento diário das instituições, moldadas ao longo da história por uma dinâmica que concede vantagens e desvantagens de forma direta e indireta com base em critérios raciais.
É importante notar que, pela sua configuração e refinamento, o racismo institucional se manifesta em várias interações com a burocracia brasileira, permeando, portanto, diferentes instâncias burocráticas, além das já conhecidas abordagens policiais discriminatórias.
Ele também se manifesta no ambiente das delegacias, onde vítimas de violência enfrentam dificuldades para registrar suas ocorrências de forma adequada[5]. Além disso, existem desafios para obter suporte jurídico na busca por reparação pelo sofrimento provocado pelo Estado, e no sistema judiciário, onde as ações dos policiais muitas vezes são legitimadas como razoáveis, ignorando o contexto do racismo no Brasil.
Como uma reação incipiente a situações como a que ocorreu em Porto Alegre, o antirracismo está gradualmente ganhando espaço no consciente coletivo da população. Não é por acaso que, durante a gravação da operação policial, as vozes indignadas das testemunhas ecoam: “Isso é racismo!”, “Ele foi esfaqueado!”, “Tentaram matar ele e vão prender ele?”, “Para que algemar ele?”.
O ponto que ainda precisa de uma exploração mais aprofundada é: Como garantir que o antirracismo se torne um compromisso efetivo e uma preocupação constante dentro das burocracias brasileiras?
A resposta a essa pergunta exige uma investigação mais detalhada, mas parece estar intrinsecamente relacionada à construção de estratégias mais abrangentes, que incluam revisões normativas, aprimoramento na seleção e treinamento de agentes públicos e a execução de programas educacionais e de sensibilização, com o propósito de promover uma cultura organizacional da Administração Pública que rejeite o racismo como prática institucional.
[1] Ver mais em: <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/02/17/homem-negro-ferido-porto-alegre-brigada-militar-sindicancia.ghtml>. Acesso em 02 de março de 2024.
[2] A título de exemplo, menciono as pesquisas de mestrado conduzidas por Vilma Reis, no programa de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e por Tiago Vinícius André dos Santos, no programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
[3] LIPSKY, Michael. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos; tradutor Arthur Eduardo Moura da Cunha. Brasília: Enap, 2019.
[4] Cita-se, como exemplo: MILANEZI, Jaciane. Silêncio: reagindo à saúde da população negra em burocracias do SUS. Boletim de Análise Político-Institucional, v. 13, p. 37-43, 2017.
[5] Segundo matéria veiculada pelo G1, o homem negro foi indiciado por lesão corporal e a investigação instaurada pela Polícia Militar descartou racismo por parte dos agentes da corporação. Ver mais em: <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/02/23/policia-civil-motoboy-negro-morador-branco-brigada-militar-abordagem-rs.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias>. Acesso em 02 de março de 2024.