Herança digital e o caso da Apple ID

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No último dia 26 de abril, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) deu provimento ao recurso de uma mãe que pleiteava a expedição de alvará judicial para obter o desbloqueio do aparelho celular ou acesso ao “Apple ID” de sua filha falecida.[1]

A sentença de primeiro grau havia julgado improcedente o pedido, sob o argumento de que, inexistindo a autorização expressa deixada em vida pela pessoa falecida, a concessão de acesso violaria a privacidade do de cujus, uma vez que atualmente os aparelhos celulares contêm elementos de natureza íntima e personalíssima, como vídeos, fotos e mensagens, funcionando tal como um diário particular e exprimindo o âmago mais recôndito do indivíduo.

Inconformada, a mãe interpôs apelação, alegando, em síntese, que era a única herdeira da filha falecida, fazendo jus, portanto, aos bens deixados por ela, o que abrangeria o acervo digital de dados. Alegou, ainda, que os arquivos digitais consistiam em bens móveis contemplados pelo artigo 83, I, do Código Civil, que alude às “energias que tenham valor econômico”. E, como bens, deveriam ser transmitidos à herdeira.

A 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal bandeirante deu provimento ao recurso interposto pela mãe. Os desembargadores entenderam que não havia, no caso concreto, justificativa para obstar o acesso da única herdeira às “memórias da filha falecida” e que não havia, nos autos, qualquer indício de que isso violaria direitos da personalidade, notadamente diante da ausência de disposição específica proibindo o acesso aos seus dados digitais pela família.

A discussão tem se tornado cada vez mais recorrente nos tribunais do Brasil e do mundo. Insere-se no âmbito da chamada “herança digital”, expressão que tem sido usada para designar o acervo de dados eletrônicos deixados por um indivíduo após a sua morte em contas de e-mail, contas em nuvem e perfis em redes sociais, incluindo documentos, fotos, vídeos, músicas etc.[2]

Tais dados podem possuir natureza eminentemente patrimonial, configurando verdadeiros bens econômicos (ou,  para alguns autores, “ativos digitais”), tais como e-books e músicas adquiridos pela pessoa falecida, perfis em redes sociais utilizados para venda de produtos ou serviços ou contas de e-mail usadas para exercício de atividade profissional. Em tais casos, há consenso de que os referidos “ativos digitais” devem ser transmitidos aos herdeiros, seguindo a regra geral da transmissão causa mortis no direito brasileiro.

O problema surge quando se trata de dados digitais que ostentam natureza preponderantemente existencial. É o caso de mensagens privadas, fotos com amigos íntimos, áudios de conversas particulares e vídeos de momentos pessoais – dados que, por conta da sua própria natureza, exprimem, quando reunidos, verdadeira projeção da personalidade no mundo virtual. Dados existenciais não se sujeitam à lógica proprietária e, portanto, não são automaticamente absorvidos pelo regramento da sucessão patrimonial inerente ao direito hereditário.

Há quem sustente que, por serem expressão dos direitos da personalidade, tais dados digitais atrairiam a regra do artigo 11 do Código Civil, ou seja, seriam intransmissíveis, admitindo-se, todavia, a concessão de acesso aos herdeiros ou a terceiros em caso de (a) expressa autorização pelo titular destes dados em vida ou em disposição de última vontade, ou, ainda, (b) necessidade de acesso para proteção de outro interesse juridicamente relevante, como a busca de pistas em caso de homicídio.

Os defensores da intransmissibilidade dos dados digitais costumam lembrar que os perfis e contas de cada pessoa podem conter e usualmente contêm material que o titular dos dados não queria tornar públicos ou conhecidos, mesmo de seus familiares mais próximos. Acessar uma conversa privada de alguém já falecido pelo Facebook ou Instagram, por exemplo, pode revelar opiniões negativas sobre os próprios familiares, ou ressentimentos e mágoas que aquela pessoa não decidiu transmitir a ninguém que não o seu direto interlocutor.

Algo semelhante pode ocorrer com imagens, vídeos e áudios, que exponham a intimidade daquela pessoa de um modo que ela, em vida, não decidiu compartilhar com seus herdeiros. Tudo isso acabaria por representar violação ao direito à privacidade, entre outros direitos da personalidade da pessoa falecida. Há, além disso, a possibilidade de conflito entre os próprios herdeiros – que, ao contrário do que ocorre em relação a bens patrimoniais, não poderia ser solucionado mediante alienação e rateio dos recursos obtidos.

De outro lado, quem defende o acesso dos herdeiros invoca, além da controversa analogia com a herança, uma espécie de “direito à memória”, sustentando que o acesso aos dados digitais auxilia no rememorar a vida da pessoa falecida e a sua própria personalidade, contribuindo para a mitigação das saudades e até para a superação do luto.

Há, além disso, um outro ponto que se coloca: ao deixar de conceder acesso aos dados da pessoa falecida, não estariam as empresas responsáveis pelas contas e perfis simplesmente se apropriando permanentemente daqueles dados? Tratando-se, em última análise, de uma decisão entre deixar tais dados sob o controle de tais empresas ou transmiti-los aos herdeiros, não deveria prevalecer o direito destes últimos?

O ponto é relevante. Se uma pessoa falecesse décadas atrás deixando um diário particular, não há dúvida de que o diário, quando encontrado, seria entregue aos herdeiros. O Estado não tinha meios de conservar esses bens ou simplesmente deixá-los a salvo de todos, nem parecia razoável que promovesse a sua destruição.

O advento do armazenamento de dados digitais trouxe essa situação nova, em que, em teoria, dados digitais podem simplesmente ser deixados onde estão. Não há, contudo, garantia alguma de que não serão utilizados ou explorados direta ou indiretamente pelas próprias empresas que mantêm em funcionamento o ambiente digital em que tais dados foram armazenados pelo titular já falecido.

A solução mais prática talvez fosse impor ao usuário, ao criar um perfil ou abrir uma conta, que decidisse o destino do seu acervo digital em caso de falecimento, optando pela transmissão a outrem ou seu imediato apagamento. Na maior parte das redes sociais e serviços de comunicação, contudo, esta escolha é uma mera faculdade do usuário, e não uma escolha obrigatória.

É o que ocorre, por exemplo, com o Facebook, que oferece a opção de criar um “contato herdeiro”, apto a gerir certas funcionalidades da conta ou promover sua exclusão. Muitas redes, incluindo o próprio Facebook, Instagram e LinkedIn, têm optado por permitir a transformação da conta da pessoa falecida em um “Perfil-Memorial”, o que não equivale a fornecer o acesso pleno dos herdeiros aos dados digitais do falecido, mas simplesmente a manter o perfil ativo, com a informação de que a pessoa já se foi.

Deixar o tema ao arbítrio dos termos de uso de cada rede social ou plataforma de tecnologia parece, contudo, manter portas abertas para disputas judiciais acirradas e que prometem se multiplicar. Decisões contraditórias têm sido proferidas neste campo. A LGPD não tratou explicitamente do tema – o GDPR, que lhe serviu de inspiração, expressamente se afastou do tema, deixando-a à regulação dos Estados-Membros – e os dispositivos do Código Civil que, hoje, são invocados neste debate, além de não terem sido formulados com vistas ao problema da herança digital, não parecem suficientes para apontar um caminho definitivo. São disposições legais demasiadamente abertas.

Quando o desejo de aplacar dor da perda de um familiar e ter acesso ao que resta de genuinamente seu no mundo (ainda que no mundo virtual) se choca com a proteção da intimidade da pessoa falecida sem deixar diretriz sobre o tema, qual solução deve ser adotada? Essa é uma questão que merece reflexão e, na dúvida entre as posições antagônicas sobre a matéria, o melhor seria que cada um de nós fosse chamado a decidir pessoalmente sobre o destino destes dados no exato momento em que ingressamos em um ambiente digital.

[1] TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Apelação 1017379-58.2022.8.26.0068, Rel. Des. Carlos Alberto de Salles, j. 26.4.2024.

[2] Sobre o tema, ver Ana Carolina Brochado Teixeira e Livia Teixeira Leal (coords), Herança Digital: controvérsias e alternativas, São Paulo: Foco, 2021.

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