Contribuinte versus pagador de tributos

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A tragédia enfrentada pelo estado do Rio Grande do Sul e a reação da sociedade para levantar recursos e doações chamam a atenção para o consenso social e a legitimação que parecem incentivar o cidadão enquanto contribuinte desse tipo de transferência, mas escassear quando falamos do cidadão enquanto pagador de tributos ao Estado.

A mobilização de cidadãos das mais variadas origens, ocupações e classes sociais, quando se impõe o real sentimento de autossacrifício em prol do bem comum e da proteção ao próximo, juntamente com alguma dose de certeza quanto ao emprego dos recursos na consecução dessas tarefas, mostra que a atitude de contribuir com bens materiais a um terceiro não é algo objeto de total rejeição social.

O ato de contribuir e de se sacrificar, portanto, em alguma medida é aceito e desejado pela sociedade.

Em muitos distritos dos Estados Unidos, a comunidade local opta por contribuir com percentual adicional do seu imposto sobre a propriedade imobiliária, diante da certeza e do propósito de destinar tal acréscimo ao financiamento das escolas distritais. Com a boa aplicação dos recursos, valoriza-se o ensino local. Com a melhoria do ensino local, valorizam-se os imóveis. Com a valorização dos imóveis, aumenta-se a arrecadação adicional do real estate tax.

Tudo isso levando, portanto, a um ciclo virtuoso. Um ciclo no qual o contribuinte, ao contrário de fugir, procura a incidência tributária. Busca o pagamento do tributo adicional, na certeza de se inserir numa relação em que o seu autossacrifício leva ao bem comum, mediante a efetiva utilização dos recursos arrecadados na finalidade almejada.

Inexistindo essa certeza, a reação é inversa. O cidadão evitará o pagamento do tributo majorado. Evitará morar naquele distrito. Os imóveis se desvalorizarão e, consequentemente, a arrecadação malversada tenderá sempre a cair. Cria-se, portanto, um ciclo vicioso. E isto com a simples percepção negativa quanto ao emprego dos recursos arrecadados.

Naquele cenário virtuoso, encontramos a autêntica figura do contribuinte, disposto a contribuir e honrar o seu dever fundamental de pagar tributos. No segundo, o contribuinte é reduzido à condição de pagador de tributos, sendo o seu dever fundamental convertido em obrigação imposta pelo monopólio da força pelo Estado.

Quais são as causas que levam ao distanciamento entre uma realidade e outra? O que incentiva o cidadão a doar-se ao enfrentamento de uma tragédia como a gaúcha, mas rejeitar e desconfiar da tributação imposta pelo Estado?

A resposta parece estar relacionada, de algum modo, à perda de credibilidade democrática do sistema tributário, não obstante o relevante episódio da recém aprovada reforma da tributação do consumo.

Tradicionalmente, tal credibilidade repousaria, essencialmente, no princípio da legalidade, na sua feição relacionada à regra no taxation without representation.

Sob essa perspectiva, a legalidade corresponde ao consentimento do cidadão com a instituição e a cobrança do tributo, devidamente representado por seu parlamentar eleito para legislar. Nesse sentido, a legalidade aproxima-se da ideia de autotributação – explícita no exemplo do adicional de real estate tax citado acima – que legitima a lei produzida com base no processo de representação democrática do cidadão[1].

Nas palavras de Diogo Leite de Campos: “os cidadãos não devem ser destinatários/sujeitos dos impostos (…), mas participantes da sua criação e da sua aplicação. Autores ou, pelo menos, coautores dos impostos, da aplicação dos impostos às suas pessoas e da resolução dos conflitos que tenham com o Estado”[2].

De modo similar, é “o povo que se tributa a si mesmo”, como ensina Geraldo Ataliba[3] citando Pontes de Miranda, o que nos conduz à ideia de que, quanto mais se incrementam as possibilidades de participação do cidadão na normatização tributária, de maneira transparente e lícita, mais se atenderá ao próprio princípio democrático[4].

Do contrário, quanto mais distanciamos a legalidade e a legitimidade da lei tributária, maior será o déficit democrático[5] a tornar o tributo socialmente rejeitado, podendo-se chegar ao extremo, como abordado por Alejandro C. Altamirano, da objeção de consciência quanto ao pagamento do tributo que em si perpetre uma injustiça formal ou material[6].

Como componente integrante da legitimidade da lei tributária, Nabais destaca a relevância do princípio da votação do orçamento, o que corporifica não só a autorização anualmente renovada para a cobrança dos tributos, como também a discussão e definição do emprego da arrecadação.

A clareza com relação à arrecadação e ao gasto, portanto, contribuem para a legitimação da lei tributária. A certeza quanto ao emprego do tributo arrecadado – tal como no microcosmos dos distritos estado-unidenses – contribui para o ciclo virtuoso referido acima. A certeza quanto à destinação do bem material arrecadado à causa socialmente eleita como justa, leva à aceitação do autossacrifício e ao efetivo dever de contribuir.

Precisamos ficar atentos, portanto, para tal crise de legitimidade da norma tributária.

Com a Constituição de 1988, essa legitimidade foi sutilmente corroída pela troca do princípio da anualidade pela mera anterioridade da lei tributária, afastando a legitimação orçamentária do tributo, o que dependia de novo e anual consentimento dos representantes legislativos do povo, como também lembrado por Misabel Derzi[7].

Hoje, assistimos a duros golpes desferidos contra a legalidade, inclusive com o aceite da mais alta corte nas suas decisões em nos temas de repercussão geral 211, 324, 554, 939, 1.084 e 1.085, consolidando uma tal “legalidade suficiente”, muito distante dos ideais vistos acima.

Embora necessária, a formatação da reforma da tributação do consumo, aprovada pela Emenda Constitucional 132/2023, tornou o centro decisório quanto à tributação de operações com bens e serviços cada vez mais distante dos entes subnacionais, cuja competência legislativa para tratar do imposto sobre bens e serviços tornou-se desidratada frente aos seus poderes atuais.

Finalmente, o caos orçamentário e fiscal, apimentados pelo cada vez mais opaco emprego dos recursos públicos, pioram ainda mais a situação, levando à impressão de que, como detectado por Ives Grandra da Silva Martins, o sistema tributário parece ser “definido por alguns políticos e burocratas, que se acostumaram viver à custa de uma Federação deformada e irracional”.

Como reverter este cenário?

A resposta é complexa, mas certamente passa pela redução do déficit democrático identificado por Diogo Leite de Campos, mediante, dentre outras medidas:

o fortalecimento do federalismo, da representatividade democrática e a reaproximação do cidadão com a tomada de decisão por parte do legislador tributário[8], o que demanda a difícil conciliação com as mudanças recentes na tributação do consumo;
a redução da distância, da desconfiança e da animosidade entre o cidadão e os seus representantes, oxalá um dia mediante a adoção do voto distrital[9], tema esse que desafia os interesses do estamento político e burocrático que se retroalimenta das vicissitudes de sistema atual e posterga qualquer debate em torno da reforma política;
a volta do diálogo entre arrecadação e gasto público, com reconexão entre receita e despesa públicas, além da máxima transparência possível e atenção ao equilíbrio orçamentário e fiscal; e
necessariamente, o resgate da legalidade tributária como princípio sempre presente, jamais suficiente, a exigir que as escolhas do cidadão em pagar tributos sejam tomadas pelos seus representantes no Poder Legislativo, sem tergiversações e teorias flexibilizadoras de ocasião.

[1] NABAIS, José Casalta.  Contratos Fiscais (reflexões acerca da sua admissibilidade).  Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 216-217.

[2] A Jurisdicização dos Impostos: Garantias de Terceira Geração.  O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza.  Coordenador Ives Gandra da Silva Martins.  Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 87-112.

[3] Constituição e República.  São Paulo: Malheiros, 2004, p. 172-174.

[4] AMENDOLA, Antonio Carlos de Almeida.  Participação do contribuinte na regulamentação tributária.  Porto Alegre: Magister, 2011, p. 131-132.

[5] CAMPOS, Diogo Leite de (op. cit.).

[6] Objección de consciência em materia tributaria.  Princípios de direito financeiro e tributário – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres.  Organizado por Adilson Rodrigues Pires e Heleno Taveira Torres.  Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[7] BALEEIRO, Aliomar.  Direito tributário brasileiro.  11ª Edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi.  Rio de Janeiro: Forense, 199, p. 95.

[8] Nas palavras de Misabel Derzi e Thomas Bustamante: “enriquecer o Federalismo, dotando de maior autonomia os entes estatais que o compõem, ampliar a competência legislativa de Estados-membros e Municípios, é dar maior espaço à codeliberação e à autodeterminação popular” (Federalismo como Princípio Moral.  Novas Tendências Conceituais.  Estado federal e tributação das origens à crise atual.  Organizado por Misabel Abreu Machado Derzi, Onofre Alves Batista Júnior e André Moreira Mendes.  2ª edição.  Belo Horizonte: Arraes Editores, 2019, v. 1, p. 457.

[9] D´AVILA, Luiz Felipe.  A Federação Brasileira.  Por uma nova federação.  Coordenador Celso Bastos.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 74-75; e REZENTE, Condorcet.  Cidadania fiscal.  Princípios de direito financeiro e tributário – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres.  Organizado por Adilson Rodrigues Pires e Heleno Taveira Torres.  Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 556.

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