Diretora da CNSeg: prescrição médica não deve ser único fundamento em decisão judicial

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Para a diretora-jurídica da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg), Glauce Carvalhal, a judicialização excessiva da saúde se tornou hoje um dos maiores desafios do setor de saúde suplementar e sugeriu algumas saídas para a desjudicialização da saúde. Em fala durante o I Seminário da Desjudicialização da Saúde, realizado na tarde desta quinta-feira (9/5) na Escola Paulista da Magistratura, em São Paulo, ela defendeu que a prescrição médica de um remédio não seja o único fundamento considerado para a decisão dos magistrados, e que o Judiciário se valha de consultas técnicas (NatJus) para apoiar as suas decisões.

Além disso, sustentou que a avaliação prévia pela não incorporação de uma tecnologia pela Conitec ou ANS deveria ser considerada na decisão do magistrado quando ela é judicializada. Também mencionou que a indústria farmacêutica deveria ser chamada a se manifestar no processo, quando da judicialização de tecnologia não incorporada – seja porque não pediu a incorporação, seja porque a tecnologia foi negada no âmbito da Conitec e/ou ANS.

Segundo Carvalhal, o aumento da judicialização causa inequidade de acesso e é a pior forma de garantia assistencial e de alocação de recursos. Ela também argumentou que os custos da judicialização impactam todo o sistema de saúde e comprometem a previsibilidade das despesas assistenciais. Sustentou, ainda, que os temas complexos da saúde exigem uma profunda análise técnica.

Ela prosseguiu dizendo que essa judicialização no setor acaba sendo ruim para todos: o beneficiários, operadoras, prestadores e, inclusive, para o próprio Poder Judiciário. No setor de saúde suplementar, a judicialização se expressa principalmente nos casos de medicamentos off-label, pedidos de cobertura de tratamento experimental, coberturas de terapias com cargas horárias muito excessivas, além do próprio caso do medicamento Zolgensma, um dos mais caros do mundo. ”A gente observa que as demandas continuam sendo distribuídas a cada momento e o número apenas se eleva”, afirmou.

No entanto, a diretora-jurídica da CNSeg observa que, após o Zolgensma ser incorporado ao rol da ANS, houve uma queda nos casos de judicialização referentes ao medicamento. ”Por que quando o medicamento foi incorporado não se teve mais judicialização? Então é toda uma questão de que quando se tem o procedimento correto, não interessa mais judicializar?”, indagou.

‘Judicialização desnecessária’

Em sua fala, a ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), enfatizou a necessidade de desjudicialização da saúde. De acordo com a ministra, diversos temas que não deveriam chegar ao Judiciário, e lá chegando, ”não deveriam ser decididos pela cabeça e a sentença de uma pessoa que não entende da questão médica”.

”Quando chega para o magistrado uma questão absolutamente técnica, se ele não tiver uma boa assessoria, a decisão será ruim. A letra fria da lei não resolverá aquele caso, nem para o paciente, nem para o médico, nem para a saúde suplementar e nem para a saúde pública”, declarou Teixeira. ”É preciso que a gente se emane para tentar saídas que sejam justas, corretas e éticas para o paciente, para que a gente consiga chegar numa decisão que seja, de fato, a efetivação da justiça”, prosseguiu a ministra.

”Com a desjudicialização, a gente não quer tirar o direito à saúde, pelo contrário, a gente quer tirar do poder Judiciário, que todos nós sabemos que é lento, e muitas vezes injusto, uma decisão que às vezes a saúde do paciente não pode esperar”, declarou.

A ministra tomou como exemplo de ”judicialização desnecessária” os casos em que os pacientes pedem acesso a medicamentos produzidos à base de canabidiol, muitas vezes garantido por meio do salvo-conduto no próprio STJ. ”Olha a questão judicial imensa para se conseguir o medicamento, tem que passar pela Anvisa, pelo Judiciário. O paciente tem que passar pela instância administrativa, a judicial e a médica para chegar no medicamento, que não tem um maior potencial ofensivo à saúde do que outros remédios de tarja preta que são vendidos com muito mais facilidade”, pontuou.

‘Cultura de litigância’

Para Daniel Tostes, procurador-geral da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o sistema está ”investido em uma cultura de litigância”. ”A complexidade, a sofisticação e o próprio tamanho das demandas que são dirigidas hoje às instâncias governamentais em todos os seus níveis, elas nos fazem refletir sobre a própria adequação desta forma de tratarmos problemas tão caros, tão sensíveis. Hoje temos mais insumos para condicionar nossas decisões”.

”A administração pública ainda carece bastante de um grau de confiança, de credibilidade. O que é natural, dada a insuficiência da prestação da entrega dos serviços sociais, das demandas sociais, que são justamente depositadas pela sociedade brasileira”, prosseguiu.

Ele explicou que o setor de saúde suplementar, diferentemente do Sistema Único de Saúde (SUS), não compreende um sistema para qual todos convergem, pelo contrário, é um conjunto de interesses absolutamente contrapostos em que ganha mais quem faz o outro perder. ”E dentro desse panorama, quem perde mais é o beneficiário. Precisamos reposicionar o centro da atenção de todos os microssistemas que de alguma maneira conversam com o setor de saúde suplementar”, afirmou.

De acordo com Tostes, a ANS vem tentando incentivar a integração de seus serviços através de uma rede de regulação, que concilie todos os correguladores. O procurador-geral do órgão também enfatizou que a ANS não é a única autoridade para a qual se aloca a competência ”de sorte a regular o setor de saúde suplementar”.

”Quando a gente fala em desjudicialização, é inescapável trazer a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para essa discussão. Porque a gente sabe que o advogado é, com muita propriedade, aquele quem leva a parte do sistema de justiça e as responsabilidades que dali decorrem”, complementou.

”A gente precisa efetivamente criar sentidos adequados para que a judicialização não seja uma litigância predatória, aquela para qual o único estímulo seja o proveito econômico, e não efetivamente a entrega de um serviço de qualidade do beneficiário do plano de saúde”, prosseguiu Tostes.

Segundo ele, a ANS possui acordos de cooperação com todos os Tribunais de Justiça do Brasil, Ministérios Públicos, Procons, Defensorias Públicas, para articular uma rede que se transmita com mais facilidade as informações, diminuindo a assimetria, que ele analisa ser uma falha reconhecia do setor, para que haja uma espécie de pipeline à respeito de informações úteis para a compreensão do beneficiário.

”Renúncias e escolhas são importantes para que a gente entenda a relação de causa e efeito, por exemplo, entre dois temas que são muito caros hoje na jurisprudência dos tribunais brasileiros que é a negativa de cobertura e o reajuste”, afirmou Tostes.

Uma outra iniciativa do órgão regulatório para reduzir a judicialização no setor, de acordo com ele, tem sido a clareza em demonstrar como é feita a atualização do rol da ANS, bem como os esforços para ressignificar o papel das ouvidorias. ”A gente entende isso como uma etapa fundamental no processo de desjudicialização também”, pontuou.

O evento foi promovido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (FonaJus) e a Revista Justiça & Cidadania.

O seminário debateu alternativas e soluções para a redução dos processos relacionados à saúde na Justiça, a partir de temas relevantes como os desafios e as reflexões da incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde, o combate às fraudes na saúde suplementar, a desjudicialização em si e, ainda, o uso do sistema NatJus.

Judicialização da Saúde

Segundo o Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2023 foram identificados cerca de 570 mil novos processos judiciais sobre saúde no Brasil, sendo 219 mil sobre saúde suplementar.

Entre os assuntos mais judicializados, estão: o fornecimento de medicamentos; o tratamento médico-hospitalar; reajuste contratual; e o fornecimento de insumos. Essa pesquisa do CNJ também aponta que entre 2020 a 2023, houve um aumento de 65% da judicialização em novos casos envolvendo a saúde.

Um recente estudo sobre a judicialização da saúde suplementar, coordenado pelo professor Daniel Wang (FGV/SP) e mencionado no evento, com recorte no estado de São Paulo, analisou todas as decisões de 1ª e 2ª instância do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) relativas a planos de saúde proferidas entre 2018-2021, divididas em 3 grupos diferentes.

Desse modo, concluiu que entre 2018 e 2021, o TJSP proferiu 205 mil decisões relativas a planos de saúde na 1ª e 2ª instâncias – uma média de 50 mil decisões por ano –, versando a maioria sobre cobertura assistencial. Em 80% das demandas judiciais relativas a coberturas assistenciais, por exemplo, os pedidos são deferidos, enquanto nas ações envolvendo questões contratuais esse índice cai para 60%, e fica em 41% nos casos sobre reajuste.

A pesquisa mostra que na segunda instância, em apenas 3 dos 600 casos há a informação de que foi realizada perícia judicial; em 9, o TJSP informa que a perícia deveria ocorrer; e em nenhum há menção ao parecer de Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), que é a principal fonte de informações técnicas disponíveis aos julgadores e independente das partes.

Em decisões de segunda instância relacionadas a negativa de cobertura e reajuste, em 56% dos casos o TJSP fundamenta suas decisões sobretudo na sua própria jurisprudência e em 42% deles no Código de Defesa do Consumidor (CDC), mais do que na Lei 9.656/1998, que acumula o percentual de 23%.

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