Contratos públicos e arbitragem: entre icebergs e mudanças institucionais

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O avanço da arbitragem no âmbito do Direito Público como forma de resolução de controvérsias em contratos públicos é visível, mesmo que não tenha atingido todo o potencial defendido pelos adeptos do instituto da arbitragem. A barreira da legalidade já foi vencida em mudanças legislativas recentes. Apesar de ser possível apontar um aumento das anulações de sentença arbitral em função da intervenção judicial, estas decisões não questionam a legalidade do processo arbitral ou mesmo a sua característica como um mecanismo adequado para solucionar controvérsias tecnicamente complexas. Assim, o consensualismo passou a ser uma forte tendência no direito administrativo brasileiro.

A ponta do iceberg

Todavia, a compreensão dos ganhos e prejuízos com a adoção sistemática da arbitragem pela Administração Pública ainda está restrita a ponta do iceberg, deixando grande parte do seu impacto na dinâmica dos contratos públicos submersa às vezes sob águas turvas. A literatura de Direito & Economia ou Análise Econômica do Direito sugere vantagens da adoção da arbitragem, como a redução nos custos de transação devido a rapidez e a qualidade técnica das decisões arbitrais.

Sob a ótica do Estado, há um custo adicional com o pagamento dos custos do processo arbitral que não existe no processo judicial, logo os ganhos com a celeridade e qualidade da decisão compensariam esse custo. A qualidade da decisão arbitral, mesmo que não gere efetivamente um precedente como uma decisão judicial, gera externalidades sociais positivas.  Ainda, em termos da dinâmica da própria relação contratual e sabendo da celeridade da decisão, o agente público deverá cumprir com maior retidão o contrato, o que resultaria em um maior número de licitantes e por consequência em um preço final menor.

Essa construção possui fundamentos teóricos importantes e repercute na literatura especializada, mas sua comprovação empírica é limitada. Afinal, estimar quais licitantes adicionais surgiriam em cenário contrafactual é bastante complexo. Ademais, a existência de um mercado competitivo com rivalidade com agentes econômicos interessados no processo licitatório é em regra trazida de forma abstrata e teórica. Quanto ao incentivo para o cumprimento contratual, outro ponto presente no argumento usual em favor da arbitragem, um olhar para a realidade organizacional do Estado pouco corrobora essa afirmação. Afinal uma série órgãos e departamentos atuam na execução de um contrato público e não necessariamente os servidores têm conhecimento da existência da cláusula arbitral e de eventuais consequências negativas maiores no caso do descumprimento contratual no caso de existir clausula compromissória.

Todavia, mesmo que haja um mercado competitivo e com grande rivalidade e os agentes públicos ajam de forma diversa em contratos com cláusula compromissória, a disseminação da arbitragem traz incrustrada uma possível mudança institucional, mais ampla que a mera redução de custos de transação.

O corpo submerso do iceberg

Para desvendar a parte submersa deste iceberg, deve-se observar que a adoção da arbitragem faz com o contrato seja interpretado e renegociado em outro ambiente institucional que o do processo judicial ou mesmo do processo administrativo tradicional. Esse ambiente institucional diversos traz ancoragens tanto para o processo de negociação quanto para a resolução de eventuais disputas contratuais. Ainda, a sentença arbitral permite que os agentes públicos tenham uma maior proteção contra avalições externas acerca da vantajosidade das decisões tomadas em um cenário de necessidade de adaptabilidade do contrato público a mudanças do contexto econômico.

Isso pode levar a uma alteração das crenças dos agentes públicos, o que na terminologia da teoria dos jogos pode trazer uma alteração dos payooffs (ganhos) das condutas usuais.

Essa mudança gera uma alteração de parâmetros acerca da atuação estatal pode gerar uma mudança institucional endógena na Administração Pública[1], a partir da adoção sistemática da arbitragem. Neste contexto, a adaptabilidade dos contratos públicos, característica importante para a coordenação e eficiência da contratação, poderia ser buscada não através de uma crença irreal no planejamento, mas sim pela construção de mecanismos de adaptabilidade que sejam capazes de gerar controle por meio de metodologias aceitas para a renegociação e o combate de processos de reequilibro que sejam oportunistas, tratando os demais processos com naturalidade.

O ambiente institucional da arbitragem permite, portanto, que as amarras jurídicas à adaptação dos contratos públicos, tais como a indisponibilidade do interesse públicos e a demonstração exaustiva da vantajosidade para a Administração, sejam flexibilizadas.

Por outro lado, o sucesso da arbitragem pode significar inclusive a mudança do ambiente institucional do próprio processo administrativo e o avanço da consensualidade podem fazer com que a necessidade de mudança de ambiente institucional desapareça, essa é essência do iceberg que está sob as águas ainda turvas.

Conclusão

Assim, o avanço da arbitragem e do consensualismo nos contratos públicos, deve ser celebrado, mas os seus impactos e efeitos ainda não foram integralmente compreendidos. Afinal, ainda resta desvendar as aguas ao redor e conhecer o corpo do iceberg que se diante do Direito Administrativo.

[1] GRIEF, Avner. Institutions and the Path to the Moder Economy: lessons from medieval trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 158-186.

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