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Embora uma das principais características do moderno Direito Penal seja o seu caráter fragmentário, no sentido de que representa a ultima ratio do sistema, limitando-se a punir as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, o caráter fragmentário do Direito Penal não tem sido óbice à criminalização de condutas que atentem contra a ordem tributária, reconhecida pelo legislador como bem jurídico digno de proteção penal.
Além disso, ainda que se costume afirmar que os crimes contra a ordem tributária não representam meras infrações à norma tributária, mas comportamentos que afetam a um bem jurídico relevante, o tratamento diferenciado conferido pelo Estado a esses delitos pressupõe um “tipo ideal” (Weber) de personalidade jurídica que é acompanhado por profundas transformações culturais. Referimo-nos aqui às mutações que deram origem ao gestor, ideal do homem moderno associado ao crescimento econômico e à ascensão das grandes empresas[1].
Nesse sentido, ainda que se criminalize as condutas contra a ordem tributária, o que se busca com a intervenção penal não é propriamente a aplicação de uma pena privativa de liberdade, senão garantir a arrecadação necessária para o financiamento de políticas públicas. A partir de uma adequada compreensão da gestão diferenciada das ilegalidades por intermédio da penalidade (Foucault), os acordos penais, e mais especificamente, o acordo de não persecução penal (ANPP), surge como uma alternativa para a resolução de conflitos, incluindo aqueles relacionados a crimes contra a ordem tributária.
Contudo, para além das críticas criminológicas ou político-criminais, o tema indica a existência de alguns problemas ainda insolúveis no plano processual, como é o caso da reparação do dano nos acordos de não persecução penal em casos de crimes fiscais, objeto deste ensaio.
Inicialmente, convém destacar que o ANPP foi introduzido no ordenamento jurídico pela Lei nº 13.964/2019, que alterou o Código de Processo Penal para incluir o instituto no art. 28-A e ampliar os espaços de consenso na Justiça criminal brasileira. Assim, a primeira condição para a celebração do acordo de não persecução penal é a existência de previsão legal para o crime em questão, incluindo os crimes tributários previstos na Lei 8.137/90.
O acordo só pode ser celebrado nos casos em que o crime tenha pena mínima inferior a quatro anos, não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, bem como que o investigado tenha confessado formalmente os fatos. Nas situações em que for possível, o Ministério Público poderá exigir a reparação do dano causado pela infração penal ou a restituição da coisa obtida com sua prática como condição para a celebração do ANPP. No contexto dos crimes tributários, isso pode incluir o pagamento do débito fiscal devido, acrescido de juros e correção monetária, além de eventual multa prevista na legislação tributária.
Na hipótese do ANPP, a reparação do dano assume, portanto, um papel crucial, mas extremamente problemático no que se refere aos crimes tributários, como se dá com a sonegação fiscal e a apropriação indébita previdenciária. Em tais infrações, a reparação do dano não possui apenas um caráter punitivo, mas também uma função restauradora e compensatória[2].
Conforme previsão legal (artigos 69 da Lei nº 11.941/2009 e 9º da Lei nº 10.684/2003), nos crimes contra a ordem tributária, a reparação integral do dano a qualquer tempo[3] extingue a punibilidade. Isso significa que, uma vez efetuado o pagamento do débito fiscal devido, não há mais interesse do Estado em prosseguir com a persecução penal, pois o objetivo primordial da punição já foi alcançado. Na esteira deste entendimento, leciona Bitencourt:
O pagamento do débito tributário e de seus acessórios constitui a principal forma de regularização fiscal. Em razão do interesse do Estado ter, prioritariamente, satisfeita sua pretensão arrecadadora, o legislador penal erigiu o pagamento da dívida tributária como causa de extinção da punibilidade nos crimes correspondentes.[4]
Esse entendimento faz com que a exigência da reparação do dano como condição para o ANPP seja considerada redundante e desproporcional. Uma vez que a reparação extingue a punibilidade do crime, torna-se desnecessário incluir essa exigência no acordo com o Ministério Público.
Enquanto alguns defendem a impossibilidade de realização do acordo no âmbito dos crimes fiscais e outros proponham o pagamento parcial do débito tributário, excluindo a obrigação de pagamento de juros e de penalidades, entendemos que tais propostas não são as mais adequadas, pois, ou inviabilizam, na totalidade, a aplicação de importante instituto processual, ou permanecem a exigir do imputado valor considerável para a celebração do acordo, esvaziando consideravelmente o seu interesse na celebração do mesmo.
Assim, no que se refere aos crimes fiscais, apesar da exigência legal para a celebração do ANPP, melhor seria viabilizar o acordo sem exigir do investigado a quitação integral do valor sonegado ou apropriado, uma vez que essa espécie de crime apresenta nuances que excepcionam a regra contida no artigo 28-A do CPP.
Além do argumento de que a reparação do dano elimina o exercício da pretensão punitiva em virtude da extinção da punibilidade, deve-se levar em consideração ainda que a justificativa para o tratamento diferenciado em relação a esses crimes reside na possibilidade de o Estado recuperar o prejuízo por meio de ações específicas, como a execução fiscal, medidas cautelares fiscais e a negativação de crédito. Além disso, ativos financeiros podem ser indisponibilizados para garantir a reparação do dano.
Vale observar que a ideia aqui proposta, de que a quitação integral do débito exigido pela Fazenda Pública é incompatível com quaisquer outras condições para a celebração de ANPP, foi, inclusive, manifestada em parecer do MPF ao juízo Federal da 2ª Vara da Subseção Judiciária de Ji-Paraná/RO[5].
Logo, considerando que o adimplemento da obrigação fiscal poderá ser viabilizado em via processual própria, aceitar um tratamento diferente do sugerido implicaria na inevitável conclusão de que os mecanismos da lei tributária e processual fiscal foram completamente substituídos pelos mecanismos penais e processuais penais quando se trata da cobrança de créditos relacionados a crimes tributários e previdenciários.
[1] Cf. VESTING, Thomas. Gentleman, Gestor, Homo Digitalis: a Transformação da Subjetividade Jurídica na Modernidade. Trad. Ricardo Campos e Gercélia Mendes. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 213 e ss.
[2] O Supremo Tribunal Federal reconheceu a natureza reparatória do parcelamento e da quitação do débito fiscal: “(…) 7. O parcelamento e o pagamento integral dos créditos tributários, além de resultarem em incremento da arrecadação, exercendo inequívoca função reparatória do dano causado ao erário pela prática dos crimes tributários, funcionam como mecanismos de fomento da atividade econômica e, em consequência, de preservação e geração de empregos. (…)”. (ADI 4273, Relator(a): NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 15-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 31-08-2023 PUBLIC 01-09-2023).
[3] Nesse sentido, prevaleceu no julgamento da ADI nº 4273: “Como a Lei n. 12.382/2011 disciplinou, em momento superveniente, apenas a extinção da punibilidade em consequência do parcelamento, sem dispor sobre o pagamento, permanece em vigor, para a satisfação integral do crédito tributário, a regra constante do art. 69 da Lei n. 11.941/2009, impugnada na presente ação, que admite efeitos penais independentemente de o pagamento ter ocorrido antes ou depois do recebimento da denúncia”. Em sentido similar, ver: AgRg nos EDcl nos EAREsp n. 1.717.169/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 12/5/2021, DJe de 17/5/2021.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico: volume 01. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 709.
[5] Cf. JF-JPA-0004061-22.2018.4.01.4101-PCJS.