Antonio Negri, o Direito e as intelectuais negras brasileiras

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Este breve texto é uma homenagem ao filósofo italiano Antonio Negri, que faleceu no dia 16 de dezembro de 2023. Sua obra foi-me apresentada durante a graduação em Direito e ainda influencia meus interesses de pesquisa e preocupações políticas.

Negri foi um filósofo dissidente, desde o meu ponto de vista. Mais próximo do marxismo por militância política e inclinação teórica, foi rechaçado pelo mainstream da intelectualidade europeia ao realizar duras críticas ao dogmatismo e ortodoxia relativas às interpretações da obra de Karl Marx. Foi professor de filosofia do Direito na Universidade de Pádua, onde se doutorou, e militante do operaísmo italiano durante os anos 1970, sendo preso pela sua atuação política.

Negri sempre foi crítico das teorias que fundamentam o Direito e analisou, profunda e criticamente, autores como Kant e Hegel. Notadamente seu idealismo, que é uma das mais importantes bases do procedimentalismo e das teorias clássicas de direitos humanos, e, para tanto, se apoiou em Spinoza, Marx e Nietzsche desde as interpretações por ele realizadas. Seu primeiro livro que tive a oportunidade de ler foi O poder constituinte: Ensaio sobre as alternativas da modernidade.

Seguiram-se a leitura de outras obras após o término da graduação, tais como O trabalho de Dionísio, Império, Multidão, escritos em parceria com Michael Hardt e publicados no Brasil no início dos anos 2000. Os dois últimos livros o tornaram mais conhecido no país, dentre outros menos conhecidos.

Ao realizar a leitura de Global: biopoder e luta em uma América Latina globalizada o considerei, desde o meu ponto de vista, um ponto de inflexão em relação aos livros anteriormente publicados e que tem influenciado meu percurso acadêmico e político. É um livro que apresenta muitas possibilidades de diálogo e crítica. Ainda é o olhar do estrangeiro sobre o Brasil tão tradicional na nossa história. Olhar que me incomodou em relação a alguns aspectos como imigração e mestiçagem. Um incômodo que se aprofundou após a leitura do livro.

Isto porque li Negri antes de conhecer e ler a obra de intelectuais negras. Também flertei com a teoria queer da filósofa Judith Butler, com quem ele também dialogou. Mas enquanto preparava o texto da pesquisa da minha primeira dissertação de mestrado tive contato com textos de Lélia González, Sueli Carneiro e Luiza Bairros, dentre outras intelectuais negras e feministas. Todas elas, de alguma forma, conseguiram explicar e demonstrar para mim o que me incomodava. O fato de que o pensamento de mulheres negras sempre é olvidado.

Lélia afirmou explicitamente no texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, ao dizer que somos faladas e infantilizadas. Luiza Bairros mostrou a partir de dados censitários das décadas de 1950 e 1960, como os processos de modernização do país não possibilitaram a mobilidade social das mulheres negras, no texto “Mulher negra”. E Sueli também ressaltou o apagamento intelectual e político de mulheres negras no Brasil e demais países da América Latina. Mas, principalmente, que era necessário enegrecer o feminismo, no texto “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.

Foram essas mulheres, dentre outras, que deram alento à minha própria produção acadêmica. Se com Negri entendi a importância das lutas para a produção de direitos, com essas intelectuais negras percebi que era necessário conhecer a produção intelectual das que vieram antes, pois elas, cada uma à sua maneira, nos possibilitam diálogos e embates teóricos importantes com a obra de Negri.

Não se trata apenas de enegrecer a teoria do poder constituinte como pensei incialmente em realizar, mas de realizar aquilo que denomino de disputa epistêmica, também influenciada por alguns autores ligados ao pensamento decolonial, principalmente Ramón Grosfoguel e Caterine Walsh, críticos do multiculturalismo.

Negri dialogou com Foucault e Deleuze para mostrar que a dinâmica das lutas estava mudando no velho mundo, após o maio de 1968 e a reformulação do sistema Bretton Woods, contemporânea da crise do petróleo e seus impactos na produção de subjetividade no contexto de reestruturação produtiva do capital. Neste sentido, Negri criticou o neocontratualismo, demonstrou os limites das teorias de Justiça e do multiculturalismo para a renovação dos pactos constitucionais em contexto neoliberal e de globalização.

Tudo isso me interessou muito, mas principalmente, a análise daquilo que denominou em conjunto com Michael Hardt de “racismo imperial”. Aquilo que parecia novidade no eixo norte-atlântico já era denunciado pelo movimento negro brasileiro desde o pós-emancipação de maneira arguta e, ainda, pouco estudada nos cursos jurídicos.

Neste sentido, a produção de intelectuais negras brasileiras é muito importante para compreendermos este contexto. Assim, mais tardiamente, Beatriz Nascimento deu novo alento às minhas pesquisas em História do Direito, especialmente, a História Constitucional, ao afirmar a necessidade de uma “história escrita por mãos negras”. E, a experiência histórica têm mostrado o quanto intelectuais e ativistas negras contribuíram e têm contribuído para a mudança em nosso país.

Mas ainda sofremos. A ausência de reconhecimento de nossas contribuições intelectuais e políticas, derivada da falta de compreensão, empatia e respeito, que, por sua vez, é alimentada pelo racismo que se expressa na violência estatal e individual daqueles que são refratários à democracia e às instituições republicanas.

Se Negri não foi alvo de racismo antinegro, por ser um homem branco europeu com todos os privilégios daí decorrentes, sua obra corre o risco de cair no ostracismo. E, é contra esse ostracismo que este texto apresenta a necessidade de pensar com ele, mas não necessariamente a partir dele, e além dele.

Pois, se a teoria é uma caixa de ferramentas como disse Deleuze, a resistência e a crítica ao Direito e ao Estado devem ter por horizonte a crítica à sisudez do marxismo ortodoxo, do dogmatismo que afeta de tal maneira nossas análises que nos impedem de enxergar a novidade das lutas, de renovar a crítica e criar novos de mecanismos de análise.

Atenta à ideia de racismo imperial também tenho criticado o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pela ausência de críticas ao racismo antinegro nas formações sociais do continente, tal como também têm ressaltado as juristas negras, muitas delas ligadas ao pensamento jurídico negro produzido que utilizam ou utilizaram a Teoria Crítica da Raça[1], mas também, por juristas negras, ligadas à Rede de Constitucionalismo Crítico da América Latina (RedCCAL)[2].

A crítica à ortodoxia e ao dogmatismo no pensamento de Negri pode estabelecer uma importante conexão com o pensamento decolonial. Como afirmei anteriormente, Negri olhou para a América Latina tentando compreendê-la e defendeu que as novidades do trabalho no “velho mundo” sempre foram a realidade do “novo mundo”.

O capital, conforme por ele ressaltado, assim como também por Aníbal Quijano, não prescindiu da demarcação de “linhas de cor” e de “sangue” baseadas em teorias racistas que tiveram no higienismo e na eugenia importantes bases de fundamentação para a estruturação dos Estados da América. Eles não foram os primeiros a realizarem estas afirmações. Basta lermos alguns textos de W.E.B. du Bois.

Este texto é uma homenagem ao pensamento de Antonio Negri, talvez no seu estilo. Respeitoso e elogioso, mas sempre crítico do atual estado de coisas. Como bom materialista, que ressaltava a importância da práxis em suas obras, crítico de Schmitt e Agamben até o final de sua vida, ressalto, talvez uma de muitas injustiças cometidas contra ele, pois no livro Decolonizing Democracy: Power in a Solid State, de Ricardo Sanin-Restrepo, foram tecidas duras críticas à leitura que Negri fez do pensamento de Spinoza.

Para que cheguem às próprias conclusões recomendo a leitura de Spinoza Subversivo e de Anomalia Selvagem, escritos por Negri, além dos próprios textos de Spinoza. São livros densos, difíceis, mas de leitura necessária para que a decolonialidade não caia na armadilha de um marxismo “desdentado” tal como denominava, o sociólogo negro brasileiro, marxista, Clóvis Moura, ao refletir sobre democracia, Estado e transformação social.

Isto porque, como lembrou Negri, “espinozanamente”, no texto O sacro dilema do inoperoso em Agamben: “o homem guiado pela razão é mais livre no Estado, onde vive segundo um decreto conjunto, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo”. Esta citação é para ressaltar que em um contexto de permanentes ataques às instituições democráticas no Brasil e demais países do continente, destaco uma lição de Negri, dentre muitas, que ele não abandonou as promessas de modernidade, mas apenas tentou mostrar alternativas. Isto também foi feito, e, ainda é, por intelectuais e juristas negras mais velhas e mais jovens.

Minha homenagem a Negri busca ressaltar o estranhamento de uma mulher negra, periférica atravessada pela obra desse filósofo estrangeiro que me fez sentir estrangeira no Estado em que nasci e me instigou por vias transversas a conhecer outras narrativas sobre o(s) Direito(s) e sua produção no Brasil através de críticas tão sofisticadas e potentes quanto as que ele elaborou ao longo de sua vida.

Este texto é um breve excurso de como o diálogo intelectual é capaz de transformar o poder mesmo em um estado sólido de coisas, pois tudo é relação, assim como o poder, segundo afirmou o intelectual negro antilhano Édouard Glissant.

[1] Tais como as professoras doutoras em Direito: Eunice Prudente, Thula Pires, Ísis Conceição, Allýne Andrade e Silva, dentre outras.

[2] Tais como as professoras doutoras em Direito: Maria do Carmo Conceição Rebouças dos Santos e Lizneider Hinestroza Cuesta.

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