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A recente tragédia no Rio Grande do Sul ainda sensibiliza a todos nós, tendo gerado toneladas de doações e inúmeros voluntários para auxílio aos impactados. É uma ocorrência que, por sua magnitude, não pode ser negligenciada. É essencial que governos e atores privados reconheçam a gravidade desses eventos e ajam de forma proativa para lidar com eles.
Os sistemas de infraestrutura da região foram assolados pelas enchentes e desmoronamentos. Foram ao menos 163 pontos de interrupção nas rodovias, os serviços de abastecimento de água e energia foram suspensos e o Aeroporto Salgado Filho está com a pista submersa, com voos suspensos ao menos até 31 de maio.
Esse cenário demonstrou gravemente a concretização de riscos climáticos, assim considerando os eventos de ordem meteorológica, hidrológica e climatológica resultantes em condições extremas desta inundações e deslizamentos. Esses eventos também poderiam incluir variações de temperaturas, secas ou queimadas. Nosso intuito, neste artigo, é explorar algumas reflexões sobre como as políticas ligadas ao setor de infraestrutura podem reagir nestes novos cenários climáticos.
Embora as mudanças climáticas estejam na pauta, a atenção dedicada aos seus efeitos sobre os contratos de concessão de infraestrutura ainda é precária, tanto do ponto de vista doutrinário, político ou legislativo. Pouquíssimas ou nenhuma política pública dispõe eficazmente sobre o tema, assim como modelagens de projetos de concessão não identificam e endereçam de forma específica esses riscos.
Atualmente já sabemos que há um “risco agudo” causado pelo aumento da frequência de eventos extremos, mas há também o “risco crônico”, decorrente da mudança das condições climáticas médias (digamos, do “novo normal climático”). Novos padrões de chuvas, maiores amplitudes térmicas e ciclos naturais alterados impactarão aspectos de engenharia dos projetos, assim como cadeias produtivas e condições sócio-econômicas.
É possível listar exemplos: i) maior instabilidade de solos, com potenciais custos de interrupções e reconstrução de vias e prédios; ii) deterioração prematura de pavimentos; iii) sobrecargas de sistemas de drenagem, iv) deslocamento de áreas de plantio e/ou redução da temporada safras, com impacto no transporte de cargas.[1]
Todas essas preocupações se aplicam para as infraestruturas existentes e para os novos projetos, tudo sob uma opaca camada de incerteza e imprevisibilidade. Para muito além serem riscos conhecidos e atribuíveis a uma das partes, existe uma notória incerteza sobre a dimensão, custo e momento do impacto causado pelas mudanças climáticas sobre nossos sistemas de infraestrutura.[2]
Daqui em diante, o setor de infraestrutura precisará aplicar esforços para lidar com estes novos contextos, com respostas em todo o ciclo dos ativos, desde o nível macro das políticas públicas setoriais até o micro da modelagem jurídica e econômica-financeira de projetos de concessões, além da gestão dos contratos existentes. É preciso planejar e implementar infraestruturas resilientes aos novos cenários.
O primeiro passo estaria na seleção de projetos a compor o portfólio dos governos[3]. De forma crescente, será necessário incluir projetos diretamente voltados para atenuar a exposição a efeitos climáticos (projetos de adaptação), como sistemas de drenagens ou contenção de cheias. Parcerias público-privadas podem acelerar a implementação e suprir dificuldades públicas de financiamento. Contudo, deve ser ressalvado que as incertezas e/ou a difícil sustentabilidade financeira de tais projetos poderia também torná-los inaptos à concessão, com o que seriam melhor implementados por outros arranjos contratuais.
Além destes projetos mais específicos, os projetos de infraestruturas típicas (rodovias, portos, energia, etc) deverão ser planejados em consideração com os atuais e futuros efeitos da mudança climática sobre ativos, como acima listados. Trata-se de implementar infraestruturas resilientes e preparadas (dentro dos limites do possível) para as futuras intempéries que aguardamos. Nisso, ainda reside a dificuldade de match entre o prazo do projeto (i.e., a concessão de 30 anos) e o prazo de retorno dos benefícios desses investimentos voltados à questão climática. Pode haver desestímulo a um investimento que não será integralmente usufruído pelo atual concessionário.
Quanto aos instrumentos contratuais de concessões e parcerias, a questão passa por novas modelagens diante de novos desafios. Tipicamente, até então, as matrizes de riscos de contratos de concessão não avaliam explicitamente os riscos climáticos ou nomeadamente os atribuem a alguma parte. Essa atual omissão merece atenção e pode gerar problemas quando da concretização destes riscos — cedo ou tarde. Quem arca com os danos e em que medida? A quem competia a preparação? Como cada parte deve se comportar em casos de emergência?
A matriz de risco dos contatos, então, terá de ser evoluída para adotar uma atribuição mais clara e específica das medidas preparatórias para os efeitos climáticos, assim como para a gestão de suas consequências, tanto pelo ente privado, quanto pelo ente público.
O tema ainda não permite soluções definitivas, mas é preciso considerar alternativas a partir de instrumentos hoje já aplicados[4]. Por exemplo, o compartilhamento de riscos entre as partes pode ser uma forma de incentivar o parceiro privado a realizar investimentos visando a proteção do ativo contra esses riscos. Por outro lado (como atualmente também sabemos), o deslocamento de riscos imensuráveis ao polo privado tende a aumentar o custo de capital dos projetos e afastar competidores.
Sugere-se adotar algum grau de flexibilidade nos contratos para incentivar cooperação entre as partes durante crises climáticas, evitando comportamentos oportunistas que atrapalhem a resposta à emergência climática ou a gestão de suas consequências. Definir regras mínimas de conduta (desobstrução de vias, restabelecimento do serviço, liberação de cobranças) e assegurar reparação da concessionária afetada podem promover colaboração.
Igual flexibilidade poderia auxiliar no endereçamento de riscos crônicos que desafiem a continuidade e exequibilidade do projeto concessório. A mudança de cenários sócio-econômicos em que se sustentam o contrato — fluxos de demandas, expectativas do PIB per capita, custo e disponibilidade de materiais — enseja que as premissas relacionadas sejam revistas. Nesses casos, cláusulas que ofereçam futuras opções às partes (p. ex., gatilhos de investimentos) permitem a adoção de melhores decisões, conforme as condições que só se verificarão em 10 ou 20 anos após a licitação.
As mudanças climáticas trazem níveis de incertezas que são antinômicos com a segurança e previsibilidade exigidas em contratos de infraestruturas. As incertezas se estendem também para a ação dos governos e para o próprio direito da infraestrutura, que também será responsável por desenvolver soluções para esses novos contextos.
[1] DE ABREU, . H. S.; MONTEIRO, . G. M.; RIBEIRO, . B.; SANTOS, . S. IDENTIFICAÇÃO DE AMEAÇAS E IMPACTOS DA MUDANÇA CLIMÁTICA NA INFRAESTRUTURA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO. MIX Sustentável, [S. l.], v. 8, n. 3, p. 142–156, 2022. DOI: 10.29183/2447-3073.MIX2022.v8.n3.142-156. Disponível em: https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/mixsustentavel/article/view/4975. Acesso em: 14 maio. 2024.
[2] SHORTRIDGE, J; CAMP, J. S. Addressing Climate Change as an Emerging Risk to Infrastructure Systems. Risk Analysis. vol. 39, p. 959-967. 2019. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30452778/. Acesso 10 de maio de 2024.
[3] BRASIL (Ministério da Economia). Anexo II – Riscos Climáticos. Anexo do Guia Geral de Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura – Guia ABC. Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/choque-de-investimento-privado/avaliacao-socioeconomica-de-custo-beneficio-1/anexo-riscos-climaticos-1.pdf/@@download/file/Anexo%20II%20-%20Riscos%20Clim%C3%A1ticos.pdf. Acesso em 10 de maio de 2024.
[4] BANCO MUNDIAL. Climate Risks and Resilience in Infrastructure PPPs: Issues to be Considered. 2016. Disponível em: https://www.ppiaf.org/documents/2870. Acesso em 10 de maio de 2024.