O Supremo pode negociar a constitucionalidade das leis?

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1) O começo da conciliação em controle abstrato

Em julho de 2018, quando o ministro Luiz Fux convocou audiências preliminares para negociar o tabelamento do frete no Brasil, escrevi um texto em que questionava as audiências de conciliação no âmbito de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI)[1]. Naquele momento, nós tínhamos vivido, semanas antes, uma paralisação gigantesca dos caminhoneiros que causou o bloqueio de estradas ao longo do país, desabastecimento em diversas cidades e impactou o PIB nacional.

Como em toda crise recente, o STF não podia ficar de fora. E tomou a dianteira. Coube ao ministro Fux a relatoria de ADI’s que questionavam o valor definido ao frete – primeiro por medida provisória e depois por lei. As ADI’s eram singelas. Ou o tabelamento e os valores ali definidos eram válidos à luz da Constituição, ou não. Mas, o ministro Fux resolveu abrir a negociação no STF. E, assim, abriu-se uma nova fronteira no Supremo – a conciliação em ADI. As audiências e tentativas de conciliação foram infrutíferas e as ADI’s até agora não foram julgadas.

O STF não parou por aí. Um dos feitos da presidência do ministro Dias Toffoli foi a criação, em 2020, do Centro de Mediação e Conciliação do STF (CMC) – um órgão do Supremo destinado, especificamente, à conciliação. O novo órgão do Supremo, no entanto, nunca esteve previsto em seu desenho original estabelecido pela Constituição de 1988. E nem precisou de PEC para nascer. Foi criado pela Resolução 697/2020.

A moda pegou.

2) A expansão da conciliação em ADI

A ministra Rosa Weber quando se tornou presidente do Supremo foi além.

Editou a Resolução 790/2022 e criou o CESAL (Centro de Solução Alternativa de Litígios), composto pelo Centro de Mediação e Conciliação (CMC) e também pelo Centro de Cooperação Judiciária (CCJ). O órgão passou a ser usado de maneira estratégica pelos ministros. Não só para conciliar temas difíceis – ao invés de julgar, agora os ministros podem também participar das negociações – , mas também para usar a remessa dos casos ao CESAL como uso estratégico do tempo (ao invés de deixar o processo em seus gabinetes, podem enviar ao Centro para ver se algo se resolve por ali; em vez de liberar para o caso para inclusão em pauta de julgamento, podem ganhar tempo enviando-o ao Centro; ao invés de terem de lidar com inúmeros pedidos de audiência ou participação de amici curiae, podem deixar o processo tramitar no CESAL).

A presidência da ministra Rosa Weber foi curta, marcante e ela faz falta ao Tribunal. Tratamos disso em outro artigo, aqui. Mas, a herança do CESAL permaneceu.

As sucessões na presidência do STF, na feliz metáfora de Diego Werneck Arguelhes, deveriam se parecer mais com uma corrida de revezamento, onde cada corredor carrega o bastão, dá o melhor de si pela equipe e, findado o seu trecho, passa o bastão para o próximo corredor. Todos podem assistir ao desempenho individual de cada corredor, mas, mais do que a corrida de cada um, importa a corrida de todos eles, em conjunto.

Não é assim que tem funcionado no Supremo. Cada ministro que assume a presidência parece querer fazer dela não uma corrida de revezamento, mas uma competição de salto ornamental – com movimentos, saltos, piruetas, closes de entrada e de saída que chamem toda a atenção para si e seus feitos – a agenda e as marcas da gestão de cada um.

Nesse modo de se conceber a presidência do STF, um órgão destinado a conciliar e mediar soluções tem ganhado sempre uma roupagem nova.

O ministro Luís Roberto Barroso criou um órgão ainda maior – a Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ). A AAJ é composta por três Núcleos: (i) o NUSOL – Núcleo de Solução Consensual de Conflitos, regulado pelo Ato Regulamentar 27/2023, (ii) o Núcleo de processos estruturais e complexos (NUPEC) e (iii) o Núcleo de Análise de dados e estatísticas (NUADE).

Não existe espaço vazio e a AAJ em geral e o NUSOL em particular vão sendo cada vez mais demandados.

Um exemplo disso é a ADI 4916 dos royalties do pré-sal, que dormita no STF e para não cair em sono profundo, foi enviada para… conciliação. Essa é uma das ADI’s mais importantes das últimas décadas, pois suspendeu em 2013 uma divisão mais igualitária e promissora de uma riqueza que pertence a todos os brasileiros, mas que por decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, manteve a concentração dos royalties nas mãos de entes produtores.

A decisão nunca foi referendada. E, assim, indo para lá e para cá, passaram-se 11 anos e nem a decisão monocrática da ministra Cármen foi levada a referendo e nem o caso definitivamente julgado. Aliás, essa é uma das decisões monocráticas que persistem no STF, junto com a decisão monocrática do ex-ministro Joaquim Barbosa que suspendeu a Emenda Constitucional 73/2012, que reorganiza a Justiça Federal no país e cria novos TRF’s, e que jamais foi levada a referendo.

Nem mesmo depois da Emenda Regimental 58/2022, que obrigava o STF a referendar em até 180 dias todas as monocráticas pendentes de apreciação pelo Plenário. É por essas e outras que surge a PEC 08/2021, vedando as decisões monocráticas e impondo limite temporal para julgamento do mérito quando são concedidas medidas cautelares. Há quem veja a PEC como oportunidade de correção de disfuncionalidades. E há quem veja como reação ao STF. Independentemente de uma posição ou outra, ou o STF se emenda, ou poderá ser emendado. 2026 está logo aí e baterá à porta, é importante lembrar.

No novo NUSOL, os casos vão se somando. O mais recente foi o da ADI 7633, sobre a reoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia e levado à conciliação pelo ministro Cristiano Zanin. O podcast Sem Precedentes, do JOTA, analisou bem o caso.

3) As perguntas necessárias sobre conciliação em ADI

As perguntas lá do começo de 2018 foram aprofundadas em outro trabalho[2] e num livro em 2021[3]. Mas, passados os anos, as perguntas não apenas continuam como, com a grandeza que o NUSOL vem ganhando, se tornam ainda mais relevantes. Convém então recolocá-las: é possível transacionar “com” e “no” controle abstrato de constitucionalidade? Por decisão monocrática? A suposta fundamentação para essa conciliação, fundada na existência de um órgão do STF nunca previsto pela Constituição, criado por Resolução, fundada ainda no Código de Processo Civil, pode se sobrepor à competência de controle de constitucionalidade dada pela Constituição ao plenário do STF – art. 102, I, ‘a’? Pode se sobrepor à lei específica que rege o processo e julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – Lei 9.868/99?

As respostas estão em aberto e em desenvolvimento, mas, em princípio, parecem ser negativas.

Se um ato impugnável por ADI (lei ou ato normativo federal ou estadual, via de regra dotado de generalidade e abstração) é inconstitucional, as “partes formais” não podem transacionar a inconstitucionalidade. Em verdade sequer há partes no controle abstrato. Não há interesse de agir, nem contraposição de interesses entre os direitos pleiteados. O interesse é o de verificação de compatibilidade da norma com a Constituição.

Designar audiência de conciliação no âmbito de ADI parece encontrar vedações constitucionais, óbices processuais e, mais ainda, impedimentos democráticos. Transacionar e conciliar a constitucionalidade de uma norma entre supostas partes ou interessados, por iniciativa monocrática de ministro relator, é enfraquecer a representação geral do Executivo e mitigar a presunção de constitucionalidade de normas regularmente editadas, e tudo isso à margem do devido processo constitucional. Isso implica, assim, violação ao princípio democrático e à separação de Poderes.

4) Mas, e as boas conciliações e acordos já promovidos pelo STF?

E quanto às conciliações e acordos que já ocorreram em conflitos entre União e Estados, ou entre os próprios estados da Federação? Não seria louvável promover esse tipo de iniciativa dialógica no STF?

Todas essas conciliações, mesa de diálogos, foram realizadas no âmbito de Ações Civis Originárias (ACOs), Mandados de Segurança (MS), Ações Originárias (AOs). Ou seja, em ações com partes, interesses contrapostos, lides, nas quais o STF funciona como Tribunal da Federação, e não estritamente como garante da constitucionalidade das leis e atos normativos. Conciliações em temas e processos como aqueles veiculados em ACO’s, MS’s e que envolvem conflitos federativos são mais do que bem-vindas.

E quanto às conciliações promovidas em ADI e que produziram bons resultados, como as que puseram fim às cotas máximas para mulheres em concursos da PM (ADIs 7433, 7483, 7486)? Os resultados, efetivamente, foram positivos, pois concretizaram o direito fundamental de igualdade. Tanto na fundamentação do acordo quanto no seu resultado prático. O espaço, o meio e a forma, todavia, são questionáveis e não parecem ser absolutamente necessários. Mas, os resultados, de fato, e é preciso reconhecer, foram muito positivos.

Acordos e conciliações em ADI, no entanto, continuam sendo questionáveis. Parece ser algo não autorizado pela Constituição – e por razões democráticas e institucionais: o Supremo não pode dispor de sua função de guardião da Constituição (art. 102, caput, CRFB/88); não pode entregar sua competência sobre o controle abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos (art. 102, I, a, CRFB/88); não pode propor ou aceitar pedido de conciliação que busque, entre poucos agentes (supostamente tidos como partes, representantes ou interessados), trinchar ou repartir leis e atos normativos editados por Presidente da República ou Congresso Nacional.

Um único ministro do STF propor conciliação em ADI sobre leis e atos normativos editados sob as adequadas competências do Chefe do Poder Executivo e do Congresso Nacional é ignorar o presumido pedigree democrático que fundamenta esse tipo de política pública e se substituir indevidamente nas escolhas políticas setoriais. Mais do que isso, é ignorar que aqueles poucos escolhidos para a audiência de conciliação provavelmente não representam todos os afetados pela norma questionada.

5) Uma nova fronteira, e a quem interessa um STF negociador?

Ao chancelar “acordos” sobre a inconstitucionalidade no todo ou em parte de leis ou arranjos executivos, o Supremo inaugura uma nova competência institucional: para além de legislador positivo, também se torna o avalista das modificações legislativas feitas por instituições que, às vezes, podem sequer ter participado do processo legislativo.

Mais do que isso, como é o ministro relator quem decide quem é chamado ou participa das audiências (de conciliação ou de negociação sobre o que vai ser decidido), e é ele quem decide se o acordo é bom o suficiente ou não para ser chancelado e levado adiante, ele também acaba inevitavelmente antecipando a valoração de um resultado e sendo, assim, coautor do resultado final proposto.

A despeito de tudo isso, desde 2018 a conciliação no STF está em pleno funcionamento. Uma nova fronteira do STF se abriu e está em expansão. Se isso é certo, bom ou se vai dar certo, estamos vendo e testando. A quem interessa um Supremo negociador?

[1] Primeiro escrevi um texto para o JOTA, disponível aqui. E depois desenvolvi um pouco mais a ideia num livro: STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo. (Ed. Arraes, 2021).

[2] GODOY, Miguel Gualano. O Supremo contra o processo constitucional: decisões monocráticas, transação da constitucionalidade e o silêncio do Plenário. In.: Revista Direito e Praxis, v. 12, n. 2, 2021.

[3] GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2021.

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