Pessoas trans e banheiros: o que dizem os dados?

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No dia 8 de agosto de 2008, Ama Fialho passeava pelo Beiramar Shopping. Após circular por algumas lojas, tentou ir ao banheiro, mas foi impedida pelos seguranças. Sua presença constrangeria as pessoas presentes e ela – uma mulher transexual – deveria utilizar o banheiro masculino, argumentaram os seguranças e a direção do shopping. Ama ainda tentou utilizar o banheiro de alguma loja, mas também foi impedida em todas as suas tentativas. Sem sucesso, cansada e nervosa de tanta humilhação, acabou por defecar nas próprias calças, no corredor do shopping, e teve que retornar para casa nessas condições.

Esse é o caso que disparou o Recurso Extraordinário 845779, que retorna nesta quarta-feira (5/6) à pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Se o julgamento for encerrado e os votos favoráveis, teremos uma conquista enorme, colocando um ponto final no péssimo debate sobre pessoas trans e banheiros. Insisto em dizer que é um péssimo debate porque é baseado principalmente em pânicos morais, falsas evidências e muita má-fé. É absurdo que o STF sequer tenha que discutir qual banheiro pessoas trans podem usar e se configura discriminação passível de indenização o impedimento de acesso ao banheiro conforme o seu gênero.

Tentarei aqui organizar o debate sobre banheiros para pessoas trans, a partir das evidências empíricas que temos já consolidadas no Brasil e no mundo. Argumentarei que: i) não há evidências que pessoas trans oferecem risco à mulheres e crianças em banheiros; ii) existem evidências de que o impedimento do uso do banheiro de acordo com o gênero causa danos; iii) não há apoio majoritário da população para o impedimento do uso do banheiro de acordo com o gênero; e, por último, iv) impedir o uso do banheiro de acordo com o gênero da pessoa é ilegal e inconstitucional.

Não há evidência de que pessoas trans oferecem risco à mulheres e crianças em banheiros

Pessoas trans não são uma novidade e elas já frequentam os banheiros de acordo com o seu gênero há mais tempo do que você está vivo. A novidade não é o uso do banheiro por pessoas trans, mas o pânico criado em torno disso nos últimos anos, o suposto perigo que existiria na presença dessas pessoas no banheiro, principalmente no banheiro feminino.

“Exigir que os alunos compartilhem banheiros e vestiários com membros, crianças e adultos, do sexo biológico oposto, gera constrangimento potencial, vergonha e danos psicológicos aos alunos, além de aumentar a probabilidade de crime de agressão sexual, molestamento, estupro, voyeurismo e exibicionismo”, argumenta um senador na justificativa de seu projeto de lei para proibir “banheiros unissex”.

Era de se esperar que quem defende a proibição do uso de banheiros por pessoas trans apresentasse dados, uma listagem de casos de pessoas trans abusando de crianças ou mulheres em banheiros. Não apresentam. A justificativa do projeto de lei mencionado não traz um único caso para sustentar a proposta. Nas poucas vezes em que apresentam casos, são anedóticos e geralmente nem ocorreram são no Brasil.

A ausência de dados não ocorre por uma lacuna ou descuido de pesquisadores, mas porque o risco que denunciam é falso. Os Estados Unidos nos oferecem um ótimo exemplo para comparação, existem estados e cidades com legislações variadas que garantem o respeito ao uso do banheiro conforme o gênero das pessoas trans e outras que impedem. Isso permite uma comparação dos casos de violência e assédio nos banheiros entre essas cidades, funcionando quase como um experimento natural.

É exatamente isso que uma pesquisa da Escola de Direito da Universidade da Califórnia fez, comparando as denúncias de assédio e violências em banheiros em dois estados americanos: um que possui uma legislação de banheiros inclusivos às pessoas trans e outros que não possui tal legislação. O estudo demostra claramente que a legislação de banheiros inclusivos não aumentou o número de casos de assédio e/ou violência.

Casos excepcionais, de fato, podem acontecer e se ocorrerem já existe legislação adequada para lidar. Banheiros nunca foram locais seguros. O jogador Daniel Alves foi condenado por estuprar uma mulher dentro de um banheiro de uma boate, uma legislação anti-trans não impediria o jogador de cometer o ato. Mesmo entre mulheres cis ou entre homens cis, existem diversos casos de assédio e violências ocorrendo dentro de banheiros. Não podemos utilizar casos isolados como se fosse um fenômeno social real e de larga escala para legislar de forma a restringir direitos de um grupo.

Existem evidências de que o impedimento do uso de banheiros de acordo com o gênero causa danos

Se não existe evidências do risco de pessoas trans usarem o banheiro conforme o seu gênero, temos fartas evidências de que o impedimento do uso do banheiro causa graves danos. O caso de Ama Fialho não é único e infelizmente é bastante comum. Segundo o Transgender Survey, dos Estados Unidos, mais da metade (59%) das pessoas trans já deixaram de ir ao banheiro por medo de discriminação; 24% passaram pela experiência de ter sua presença questionada no banheiro; 12% foram assediadas verbalmente, atacadas fisicamente ou agredidas sexualmente ao acessar ou usar um banheiro; e 9% relatou que alguém lhes negou acesso a um banheiro.

Não apenas pessoas trans estão em risco, mas até pessoas cis podem ser atacadas em função do pânico moral sobre pessoas trans e banheiros. Em dezembro de 2023, em Recife, uma mulher cis foi agredida com um soco na boca ao sair do banheiro de um restaurante, por ter sido confundida como uma mulher trans.

Casos similares têm sido relatados em diversos países pelo mundo, como nos mostram os casos de Aimee Tom e Jay, ambas mulheres cis estadunidenses atacadas em banheiros após terem sido confundidas como mulheres trans. O pânico moral sobre banheiros instaura uma vigilância paranoica sobre corpos que frequentam banheiros que não é saudável para ninguém, todos que de algum modo não conformam aos modelos hegemônicos de aparência de algum gênero estão em risco de sofrer discriminação e até violência física ao ir ao banheiro. Se o objetivo desse debate era proteger mulheres e crianças, parece que o resultado tem sido o exato oposto.

Não há apoio majoritário da população para impedir o uso do banheiro de acordo com o gênero

O pânico moral sobre os banheiros tem gerado muitos debates e mobilização. Uma busca rápida pelos termos banheiro + transexual no Google Notícias retorna mais de 250 reportagens da mídia brasileira sobre o assunto. Projetos de lei para impedir pessoas trans de usarem os banheiros de acordo com o seu gênero ou para proibir “banheiros unissex” tem aparecido nas casas legislativas de diversos estados e municípios do país, algumas com sucesso de aprovação, como em Limeira, no interior de São Paulo.

Tudo isso faz parecer que o tema tem largo apoio da população, mas será mesmo que isso é verdade? Os dados mostram que não!

O Instituto Ipsos realiza anualmente um survey em 26 países para medir a opinião pública relacionada a temas LGBTI+ e o último relatório acabou de ser publicado. A maioria (53%) da população brasileira apoia que pessoas trans frequentem espaços segregados de gênero, como banheiros, segundo seu gênero. Apenas 34% da população é contra e 11% não soube opinar ou não tem opinião formada sobre o assunto. O apoio no Brasil, inclusive, é maior do que a média global que fica em torno de 50%. As redes sociais e o parlamento não são um bom termômetro da opinião pública e tendem a sobrerrepresentar opiniões de uma elite conservadora.

Impedir o uso do banheiro de acordo com o gênero da pessoa é inconstitucional

A identidade de gênero é um bem jurídico protegido constitucionalmente. É por esse fundamento que o STF conferiu o direito à retificação de nome e gênero, para pessoas trans, direto em cartório e sem laudos médicos. A mesma base é o que permitiu a criminalização da transfobia. Nesse último caso, o tribunal entendeu que a Constituição impõe o dever de proteger a identidade de gênero de tal maneira que o desrespeito pode ser punido com a pena mais grave que temos em nosso direito: a prisão.

Se tamanha é a proteção, não faz sentido acreditar que seria possível uma discriminação em relação a qual banheiro as pessoas trans utilizarão, já que isso implicaria numa negação da realidade do gênero das pessoas trans e uma sobrevalorização da genitália em detrimento do gênero.

Tanto não faz sentido, que nos últimos anos parte considerável da jurisprudência tem sido favorável às pessoas trans. Aqui vai uma pequena lista de formas de desrespeito à identidade de gênero de pessoas trans que a jurisprudência tem deferido indenizações: tratar a pessoa trans pelo gênero errado (nas redes sociais, na mídia ou em atendimento); não atualizar corretamente o cadastro no sistema da empresa e exibir o nome morto (bancos, plano de saúde, escola); impedir de usar o vestiário feminino e, por fim, impedir de usar o banheiro feminino (em estabelecimentos comerciais e também no próprio trabalho). Julgar de forma diferente seria uma contradição com a jurisprudência consolidada do próprio STF e de outros tribunais.

Depois de quase dez anos do início do julgamento, o STF finalmente parece ter coragem de enfrentar o tema. Muita coisa mudou nessa década, temos hoje uma fartura de dados e jurisprudência que podem auxiliar os ministros. Tentei consolidar aqui um pouco disso e espero em breve celebrar o fim desse péssimo debate, com uma excelente sentença favorável aos direitos das pessoas trans brasileiras.

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