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Comitê gestor do IBS, harmonização e Federação – parte 2

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Na primeira parte de nossas reflexões, publicada em 14 de março, cuidamos de examinar os desafios ao legislador complementar decorrentes das relações horizontais entre entes subnacionais e das diversas questões que pendem de definição para o funcionamento do novo sistema tributário sobre o consumo.

Nesta segunda parte, nos ocuparemos das relações verticais entre a União e os entes subnacionais, a respeito das quais havia uma preocupação de que o Comitê Gestor, denominado Conselho Federativo na primeira versão do projeto, fosse, na prática, “sequestrado” pela União, o que poderia diminuir o poder daqueles entes nas decisões relacionadas ao IVA e ofender a cláusula pétrea do sistema federativo.

Para tentar impedir isso, a versão aprovada pelo Senado manteve a União fora do Comitê e determinou, no inciso VI do §2º do art. 156-B, que “as competências exclusivas das carreiras da administração tributária e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão exercidas, no Comitê Gestor e na representação deste, por servidores das referidas carreiras”. Ou seja, o Comitê contará com manifestações (votos), apenas, de estados e municípios e será formado por funcionários desses mesmos entes subnacionais.

Se, de um lado, essa solução busca atribuir maior poder de decisão aos entes subnacionais, relativamente à administração do IBS, por outro lado, ela implica a possibilidade de coexistência de regulamentos, fiscalizações e interpretações distintas para o IBS e a CBS.

A propósito, imagine-se a situação de uma empresa que, em um dia, receba a fiscalização da União quanto às operações gravadas pela CBS, sofra a lavratura de um auto de infração com a aplicação da norma “x” e que, um mês depois, essa mesma empresa receba a fiscalização estadual ou municipal, atinente às mesmas operações, porém para o IBS, e o outro fiscal venha a interpretar que a norma “x” não seria aplicável, que a operação nada teria de ilícita ou que, na realidade, seria aplicável a norma “y”, com conteúdo distinto.

Tratando-se dos mesmos fatos geradores, atinentes a tributos gêmeos, seria possível que houvesse dupla ou tripla fiscalização, inclusive com eventuais impactos sobre prazos de prescrição/decadência? Se houvesse um regulamento do Comitê Gestor para o IBS e outro, da Receita Federal, para a CBS, haveria como impedir conflitos interpretativos? Qual tipo de norma poderia ser diferente entre o ente federal e Comitê Gestor (estados e municípios)?

A falta de um entendimento comum – harmonização – entre o Comitê e a União pode levar a inconsistências em fiscalizações e arrecadações. Afinal, norma jurídica supõe interpretação[1] e toda fiscalização parte de determinados conceitos. Se estes forem distintos, conforme visto nos exemplos acima, inviabiliza-se uma fiscalização uniforme. Inviabiliza-se, assim, a própria ideia de um IVA, ainda que dual.

Logo, a centralização não só parece inevitável para evitar conflitos e gerar harmonização, mas parece ser a finalidade perseguida pela EC 132.

Nesse sentido, o art. 149-B estabelece que o IBS e a CBS “observarão regras comuns em relação a:

fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos;
imunidades;
regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e
regras de não cumulatividade e de creditamento.

O § 6º do art. 156-B estabelece, ainda, que o Comitê Gestor e a União “atuarão” para harmonizar o conjunto de normas relacionado aos dois tributos, vejamos:

6º O Comitê Gestor, a administração tributária da União e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional compartilharão informações fiscais relacionadas aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, e atuarão com vistas a harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos a eles relativos.

Ao utilizar o verbo “atuarão”, o texto do § 6º parece claro quanto à necessidade de serem harmônicas as normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos.

Nesse sentido, a EC 132/23 previu a possibilidade de o Comitê Gestor e a União integrarem as soluções de administração e cobrança dos tributos, inclusive o próprio contencioso dos tributos. É o que dispõem os §§ 7º e 8º do art. 156-B:

7º O Comitê Gestor e a administração tributária da União poderão implementar soluções integradas para a administração e cobrança dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V.

8º Lei complementar poderá prever a integração do contencioso administrativo relativo aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V.”

As faculdades parecem dizer respeito às “soluções de administração e cobrança”, inclusive o contencioso, não, porém, às normas e interpretações que devem ser harmonizadas, sob pena de contradição com o disposto no § 6º do mesmo dispositivo e art. 149-B.

Nada obstante o § 6º determine a atuação conjunta dos entes federativos na harmonização de normas e interpretações, o fato é que a União não faz parte do Comitê Gestor. Como ela não faz parte do Comitê, será preciso que a lei complementar estabeleça o procedimento para uniformizar os entendimentos e debelar eventuais divergências interpretativas entre a União e os estados e municípios.

Afinal, havendo divergência normativa ou interpretativa entre a União e os estados e municípios, quem dirimirá as dúvidas? O Judiciário diretamente (STJ, nos termos do novo art. 105, I, ‘j’ da Constituição)? Ou será criado um órgão superior ao Comitê Gestor e à Receita Federal do Brasil (RFB) para uniformizar o entendimento?

Como isso não foi previsto no texto da EC 132/23, essas dúvidas terão de ser sanadas na lei complementar, com o risco de, a depender do procedimento que vier a ser adotado, afetar-se a Federação. Isso, porque, em princípio, tudo o que diz respeito à “divisão de competências e poderes entre entes federativos deve constar do texto da Constituição” (ADI 1945, Red. p/ acórdão do ministro Dias Toffoli, DJe 20/05/2021)[2].

Quando a Constituição reserva à lei complementar a possibilidade de prevenir conflitos de competência, nos termos do art. 146, I da CF, há um suposto lógico-jurídico de que exista alguma competência constitucionalmente estabelecida para os entes federativos em disputa. Não é possível que a lei complementar crie poderes ou competências não estabelecidos na Carta Maior[3].

Se isso fosse permitido, a lei complementar poderia redefinir o próprio pacto federativo, o que afrontaria o artigo 60, § 4º, I, da Constituição Federal. Logo, a tarefa do legislador complementar da EC 132 não será simples. Além de precisar definir dezenas de aspectos fundamentais ao funcionamento do novo sistema, sob pena de indeterminação, o legislador não poderá desbordar ou amesquinhar as competências previstas pela Constituição aos entes federados.

Ainda do ponto de vista federativo, não se pode descartar o poder que a União, mesmo sem assento, poderá exercer sobre o Comitê Gestor, seja em função de sua capacidade de liberação ou bloqueio de recursos aos entes subnacionais via orçamento, seja por deter a iniciativa de lei complementar apta a alterar questões fundamentais do imposto formalmente titularizado por estados e municípios.

Se o Comitê Gestor simplesmente ficar a reboque das interpretações da Receita Federal, será possível falar-se, verdadeiramente, em competência tributária ou mesmo em capacidade tributária de estados e municípios sobre bens e serviços? Não haverá, nesse caso, ofensa ao pacto federativo?

Embora não exista um único conceito de federalismo, pois este varia de acordo com a conformação normativa e os processos históricos de formação de cada estado federal, há parâmetros mínimos sem os quais não há falar em verdadeira federação.

Conforme já destacamos[4], no Estado Federal abdica-se da soberania de cada estado-membro para eleger-se a soberania do Estado Central, remanescendo a autonomia federativa caracterizada como o poder “que têm as partes de um mesmo povo de organizar a sua vida própria, política e administrativa, dentro dos princípios constitucionais da União”.[5]

A autonomia, portanto, “pressupõe um poder de direito público não soberano, que pode, em virtude de direito próprio e não em virtude de delegação, estabelecer regras de direito obrigatórias”.[6] Esse poder é caracterizado pela capacidade de autogoverno, auto-organização, autolegislação e autoadministração.[7]

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 assenta no artigo 18 que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. A Constituição é quem cria, no mesmo átimo de tempo/espaço, todos os entes da federação (União, estados e municípios) e estabelece não só a autonomia administrativa e financeira, mas a autonomia política dos entes federados, isto é, a liberdade de exercer suas escolhas, o que supõe competência legislativa.

Porém, à exceção de um poder marginal — quase formal — quanto às alíquotas[8], a EC 132 expurgou completamente a competência legislativa dos entes subnacionais e concentrou na União o poder de legislar, por intermédio de lei complementar, sobre tributos correspondentes a 91,57% da arrecadação nacional.

Assim, embora a centralização, uniformização e harmonização do IBS e da CBS pareçam fundamentais do ponto de vista da segurança jurídica dos contribuintes, isso, paradoxalmente, tem o condão de concentrar ainda mais poder na União Federal, de sorte a tornar a estrutura federativa simbólica e possivelmente inconstitucional (RE 591.033, DJ 17/11/2010, ministra Ellen Gracie e ADO 25, DJ 12/8/2017), conforme explicitamos anteriormente[9].

Em suma, a aprovação da EC 132/23 desafia o legislador complementar a definir dezenas de questões essenciais ao funcionamento do novo sistema e prever soluções que assegurem a harmonização dos entendimentos relacionados ao IBS/CBS. Nessa tarefa, há de se ter cuidado para não gerar tensões federativas ou comprometer a operacionalidade do sistema por falta de densidade normativa.

[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Para uma teoria da norma jurídica: Da teoria da norma à regra-matriz de incidência tributária, pp.6/7, 2019. Disponível em: <https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2019/06/Paulo-de-Barros-Carvalho-Para-uma-teoria-da-norma.pdf>

[2] “De fato, as pessoas políticas, enquanto tributam, buscam fundamento de validade para seus atos jurídicos (leis, decretos, portarias etc.) exclusivamente na Constituição. Obedecem à lei complementar nacional circunstancialmente, vale dizer, apenas quando ela explicita comandos constitucionais. Ampliações ou restrições de competências tributárias levadas a efeito por lei complementar nacional, porque inconstitucionais, não vinculam nem a União, nem os Estados, nem o Distrito Federal, nem os Municípios.” (ADI 1945, citação de Carrazza no voto vencedor do Min. Dias Toffoli)

[3] Misabel Derzi alerta que “o poder nacional encontra um limite na edição de leis nacionais – esse limite está na generalidade das normas que edita. (…) É lícito dizer que a limitação possui limite. Quanto a este último ponto, o grande risco reside em o Legislativo federal (ou deveríamos dizer nacional?) editar normas gerais ‘contra o espírito da Constituição, em desfavor das ordens jurídicas parciais, cuja existência e fundamentos de validez decorrem diretamente da Lei Maior” (Normas gerais de prevenção de litígios, consensualidade e processo administrativo tributário e código de defesa dos contribuintes / coordenado por Ministra Regina Helena Costa [et al] – Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023, p. 56).

[4] SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa; FUNARO, Hugo. ICMS e Guerra Fiscal: da LC 24/1975 à LC 160/2017, p. 132

[5] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte do estado-membro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 53.

[6] BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do estado federal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 13.

[7] Idem, p. 54.

[8] “A alteração de alíquotas locais só seria possível após o Senado estabelecer a alíquota inicial (de referência) do IBS. E, ainda assim, seria de difícil aplicação prática, já que as isenções e reduções seriam taxativas e os eventuais aumentos ou diminuições teriam de ser feitos para todos os itens. Nesse caso, a “margem” para calibração seria restrita, já que majorações na alíquota padrão podem desestimular o consumo local e decréscimos podem comprometer a arrecadação do ente” (SOUZA, Hamilton Dias et al. Desafios Federativos e Reforma Tributária. Revista Consultor Jurídico, 31 de agosto de 2023)

[9] Idem.

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