A batalha dos videogames

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Nas últimas semanas, foram publicadas numerosas notícias sobre processos judiciais movidos por Jonathan Calleri e Rafinha, jogadores do São Paulo Futebol Clube, contra a EA Sports, sociedade empresária responsável pelo desenvolvimento de jogos eletrônicos.

Os atletas alegam que a companhia utilizou, sem autorização prévia e sem pagar qualquer tipo de remuneração, seus nomes, imagens e atributos físicos para produzir avatares para algumas edições da franquia de jogos de videogame popularmente conhecida como FIFA Soccer (atual EA SPORTS FC), motivo pelo qual pedem indenizações que chegam a R$ 200 mil.

A EA Sports, por sua vez, alega que não violou qualquer direito dos atletas, pois ambos os jogadores atuavam em clubes estrangeiros ao longo dos anos em que foram retratados no videogame e contratos celebrados, naqueles mesmos anos, com entidades coletivas como a Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro) autorizariam a empresa a retratar fielmente jogadores, clubes e ligas em seus produtos.[1]

Naturalmente, a solução da disputa dependerá da análise acurada do caso concreto e dos elementos de prova que serão apresentados pelas partes. Todavia, a disputa chama atenção para a crescente exploração de imagens e nomes na construção de avatares, recurso que tem se tornado cada vez mais frequente em diferentes aplicações tecnológicas e que constitui a essência de jogos virtuais baseados em competições esportivas reais, como NBA, Madden NFL, PGA Tour etc.

No Brasil, a exploração econômica das imagens de espetáculos desportivos deflagra o exercício do direito de arena, que encontra previsão expressa no artigo 42 da Lei Pelé (Lei 9.615/1998).[2] A Lei Pelé assegura aos atletas uma participação na receita proveniente desta exploração (arts. 42, § 1º, e 42-A, § 2º)[3] em homenagem ao protagonismo destes profissionais na construção do espetáculo, mas aborda o tema sob a perspectiva de uma universalidade de elementos que se combinam indissociavelmente: imagem dos jogadores, imagem dos árbitros, imagem das torcidas, imagem do estádio, imagem dos símbolos oficiais do clube, tais como insígnia e uniformes, e assim por diante. A questão dos avatares em jogos de videogame é, contudo, diversa: não se trata de captar a imagem de um espetáculo desportivo real e reproduzi-la tal como o evento transcorreu.

O avatar é uma construção digital do atleta, que exprime, a rigor, o uso de sua imagem fora do contexto do espetáculo esportivo – ou, ao menos, do espetáculo esportivo real. Assim, a matéria seria disciplinada pelo artigo 20 do Código Civil brasileiro, que afirma: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Vale dizer: a autorização pessoal do atleta seria imprescindível. Note-se que um atleta pode, naturalmente, ceder o direito de uso de sua imagem a uma entidade desportiva, hipótese que é, inclusive, disciplinada expressamente pelo artigo 87-A da Lei Pelé.[4]

No mesmo sentido, a nova Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023) estabelece em seu artigo 164, caput, que “o direito ao uso da imagem do atleta profissional ou não profissional pode ser por ele cedido ou explorado por terceiros, inclusive por pessoa jurídica da qual seja sócio, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho esportivo”.

Entretanto, à falta de uma cessão de direito de uso de imagem autorizada pelo próprio atleta, a simples concordância do clube em que o atleta desempenha seu ofício ou das federações que organizam os campeonatos não se afiguraria suficiente para que a imagem do atleta fosse utilizada na produção de um avatar, ainda mais com fins comerciais como ocorre no caso dos jogos de videogame (Código Civil, art. 20).

Tal entendimento vem, contudo, despertando críticas: em um contexto em que a prática profissional dos esportes vem se organizando com frequência cada vez maior em ligas, reservar a cada jogador a possibilidade de negar a utilização da sua imagem e nome para a criação de um avatar digital poderia comprometer a própria divulgação da competição esportiva.

Os jogos de videogame, conquanto não sejam uma reprodução fiel do que ocorre na realidade, desempenham um papel publicitário, na medida em que difundem aquela competição e atraem o interesse de milhões de jovens para a versão real do espetáculo esportivo. Isso se torna relevante para atrair novas gerações para o consumo do entretenimento associado à prática do esporte e que consiste em uma de suas principais fontes de custeio.

Nesse contexto, se um atleta puder negar o uso de sua imagem e, com isso, impedir a criação do seu avatar, qual será o resultado desta negativa? O time será reproduzido virtualmente sem o seu lateral esquerdo ou sem um de seus atacantes? Um Fluminense virtual, sem Germán Cano, seria identificado, de fato, como Fluminense pelos usuários de videogame? A reprodução digital do próprio campeonato não estaria, ela própria, comprometida pela ausência de uma de suas maiores estrelas?

Na prática, as sociedades desenvolvedoras de videogame vêm se defrontando com esta questão já há alguns anos e há edições de seus jogos que são comercializadas com nomes fictícios no elenco de times brasileiros ou mesmo sem certos clubes.[5]

No exterior, a necessidade de autorização individual de cada atleta é mitigada  por um modelo de negócios em que os próprios jogadores cedem seu direito de uso de imagem às ligas ou outras organizações, como as confederações nacionais, que negociam coletivamente as licenças de uso.[6] A defesa deste tipo de modelagem jurídica ganha força no Brasil onde se discute atualmente a criação de uma liga de futebol profissional envolvendo os principais clubes nacionais.

Para quem acha que o embate entre atletas e fabricantes de videogames já é tormentoso, vale conferir outra faceta desta disputa que vem ganhando espaço nos últimos anos: nos Estados Unidos, tatuadores ajuizaram ações judiciais contra desenvolvedoras e distribuidoras de videogames alegando a violação aos seus direitos autorais, na medida em que os avatares dos jogos esportivos reproduzem as tatuagens dos atletas.

Tatuagens são, como se sabe, obras intelectuais cujos direitos autorais pertencem aos tatuadores e, embora se entenda que a pessoa tatuada tem, pela própria natureza da tatuagem, o direito de “expor a obra”, terceiros como sociedades desenvolvedoras de videogames não têm o direito de reproduzi-la para fins comerciais sem o consentimento do tatuador.[7] Como solucionar esse embate?

Há 50 anos, quando surgiram os primeiros consoles de Odyssey – o precursor de Ataris, Nintendos e PlayStations –, pouca gente deve ter imaginado que aquele joguinho lúdico formado por quadrados digitais despertaria conflitos tão complexos e intensos. Verdadeiras batalhas judiciais têm sido travadas no campo dos videogames, envolvendo cifras que chegam à casa dos bilhões. Shakespeare talvez não perdoasse a paráfrase, mas parece que há mais coisas entre o sofá e a tela do que supõe a nossa vã filosofia.

[1]Calleri e Rafinha processam EA em R$ 235 mil por direitos de imagem no FIFA” (Globo Esporte, 24.5.2024)

[2]Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.

[3]Art. 42. (…) §1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil. (…) Art. 42-A. (…) § 2º Serão distribuídos aos atletas profissionais, em partes iguais, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais do espetáculo desportivo de que trata o caput deste artigo.”

[4]Art. 87-A. O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo. Parágrafo único.  Quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.”

[5]EA Sports vs Image Rights In Brazil: Why can’t I play with Brazil on FIFA 2020?” (Lex Sportiva, 22.7.2020).

[6]Sociable Soccer is coming to consoles this November along with thousands of new players thanks to FIFPRO license” (www.techradar.com, 13.10.2023).

[7] Para mais detalhes, ver Anderson Schreiber, Tatuadores versus videogames: uma inesperada batalha no campo do direito autoral, in Juridicultura, São Paulo: Foco, 2023, pp. 83-86.

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