No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

A cultura é essencial: tráfico de drogas e homicídios

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A multiplicidade burocrática e organizacional do Sistema de Justiça Criminal pode ser visualizada mediante o enfoque de 2 de seus principais núcleos: o processamento do tráfico de drogas e o processamento dos homicídios. Estes dois crimes representam estatisticamente em torno de 40 por cento de todo o sistema (INFOPEN, 2019).

Não é novidade que críticas ao Sistema de Justiça Criminal Brasileiro tenham emergido nos últimos anos vindas de várias fontes científicas, como a criminologia, o direito penal, o direito processual penal. Muitas vezes essas críticas são antagônicas entre si, e envolvem sobretudo duas vertentes principais: a primeira é que o sistema funciona muito, prende muito e de maneira seletiva, e por isso não propicia que o acusado se defenda adequadamente. Neste caso o funcionamento do sistema seria otimizado, porque funcionaria demais; já a segunda preceitua que o sistema funciona pouco e é majoritariamente deficiente, pois não consegue punir os acusados pelos crimes que acontecem na sociedade, gerando a sensação de impunidade. Nestes casos o sistema funcionaria “de menos”, e apresentaria um funcionamento deficiente.

Exatamente por este motivo, as partes do sistema que processam tráfico de drogas e homicídios ganham especial importância, na medida em que estes dois crimes ilustram a dicotomia mencionada entre funcionamento otimizado versus funcionamento deficiente. No caso do tráfico de drogas, pelo seu enorme potencial encarcerador, o funcionamento seria otimizado, já no caso dos homicídios, pela dificuldade em elucidar os casos, o funcionamento seria deficiente. Existem múltiplas pesquisas empíricas que mostram exatamente essa realidade.

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O que se percebe pelo conteúdo destes dois tipos de críticas é que o sistema em si mesmo é antagônico. Os seus diversos núcleos possuem peculiaridades diferenciadoras. E por que isso acontece? Criminologistas, sociólogos e juristas tentam responder essa questão há muito tempo. Evidentemente que não existe apenas uma resposta. Um criminólogo crítico poderia responder essa pergunta de uma forma, e um criminólogo organizacional de outra forma. São respostas possíveis que de forma alguma se excluem, e estão em conformidade com o escopo de pluralidade que norteia o método científico.

Mas diante deste contexto fragmentário de funcionamento do sistema, sem dúvida a perspectiva organizacional da criminologia é capaz de elaborar respostas cientificamente eficientes. E a criminologia organizacional é uma perspectiva teórica interessante porque ela mostra como as disfuncionalidades do sistema podem decorrer do próprio funcionamento do sistema.

Quando se cogita acerca de disfuncionalidades burocráticas, as primeiras indagações que vem à tona são relacionadas ao modelo clássico, o célebre Modelo Racional de Organização. Quanto mais próxima a burocracia pública do modelo típico ideal de uma burocracia profissional weberiana, mais consolidado estaria o Modelo Racional de Organização. Neste modelo clássico, o racionalismo é a principal tônica. Não há espaço para emoções, o brocardo hegemônico é: sine ira et studio, isto é, tudo deve ser pautado pela racionalidade e pela impessoalidade.

A sociologia brasileira vem apontando tradicionalmente dificuldades históricas na construção de uma burocracia profissional nacional. A relação entre Estado e Sociedade é historicamente tensa e tormentosa no Brasil. Raymundo Faoro (2001), clássico da sociologia brasileira, mostra como estão enraizadas heranças patrimonialistas nos estamentos burocráticos brasileiros, e como esta herança é prejudicial ao desenvolvimento do país.

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Não serão manejados dados empíricos, dado o escopo deste artigo, mas é possível que essas dificuldades históricas estejam atuando para produzir as disfuncionalidades apontadas no processamento dos dois crimes apontados, o tráfico de drogas e o homicídio. Essa parece ser na maioria das vezes uma perspectiva sociológica válida quando se estuda a burocracia pública nacional.

No entanto, o mais provável é que as disfuncionalidades apontadas sejam melhores elucidadas cientificamente por outro tipo de teoria organizacional: as teorias organizacionais contemporâneas. Estas, especialmente a denominada Teoria Institucional, começam a problematizar o primado de que o funcionamento das organizações se dá exclusivamente por aspectos racionais. Evidentemente que o modelo Racional de Organização continua válido e aceito, mas novos aspectos organizacionais são desenhados, e esses aspectos colocam agora em foco as emoções, crenças e valores que permeiam o ambiente organizacional. De modo pioneiro, Selznick (1996) demonstrou como é fundamental para a vida organizacional a chamada Cultura Organizacional, um conjunto de valores informalmente estabelecidos, que atuam para explicar as ações organizacionais.

A grande questão sociológica relativa ao processamento do tráfico de drogas e do homicídio é que as diferenças de funcionamento desses dois subsistemas podem ser explicadas principalmente pela diferença da Cultura Organizacional existente entre eles. Justamente, essa é uma questão é fundamental: são dois subsistemas absolutamente diferentes, e que por estes motivos possuem Culturas Organizacionais diferentes.

No caso do tráfico de drogas, vislumbra-se que premissas culturais que estabelecem definições e pressupostos precisam atuar para que todo o potencial encarcerador do sistema se viabilize. As diferentes agências que atuam neste subsistema precisam compartilhar definições preliminares, consensos preliminares que pavimentam caminho para o funcionamento otimizado do sistema. Vislumbra-se também neste sentido, que haja uma sincronia, uma espécie de ação integrada principalmente entre as agências de acusação, o Ministério Público, a Polícia Civil e a Polícia Militar, no que tange à neutralização das bocas de fumo, à neutralização dos pontos de tráfico, à pacificação dos espaços urbanos deteriorados pelo tráfico de drogas. Outros valores do sistema, como o contraditório e a ampla defesa dos acusados, ficam coadjuvados.

Acontece o oposto no subsistema de processamento dos homicídios. Neste caso, o que parece ser a tônica do sistema, muito pela extensão do procedimento, que envolve a etapa derradeira representada pelo julgamento do Júri Popular (o procedimento é o mais extenso da persecução penal no Brasil), é uma Cultura Organizacional que coloca protagonismo justamente nos valores atinentes ao contraditório e a ampla defesa do réu. Isso não está presente apenas nas várias etapas do procedimento, que se repetem muitas vezes, mas também está assentado informalmente, no ambiente organizacional deste subsistema, sendo valores compartilhados por todas as agências, inclusive as de acusação, como o Ministério Público e a Polícia Civil. Isso é sui generis no caso dos crimes dolosos contra a vida, e atua dificultando o processamento, e consequentemente faz a performance do sistema decair, uma vez que o princípio da eficiência fica coadjuvado.

A cultura, materializada no conceito de Cultura Organizacional, oriundo da Teoria Institucional, uma Teoria Organizacional Contemporânea, é um fator fundamental para explicar a diferença de performance de processamento existente entre o tráfico de drogas e o homicídio, e também para explicar as diferenças internas de processamento dos vários núcleos do Sistema de Justiça Criminal.

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