A inteligência artificial em prol do acesso à Justiça

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A cidadania, estabelecida no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988,  figura como um dos Fundamentos da República Federativa do Brasil. Esse  conceito vai além da simples associação entre cidadania e o exercício de direitos  políticos. Representa uma condição jurídica que vincula o indivíduo a uma  sociedade politicamente organizada, proporcionando-lhe o exercício de direitos  civis, políticos e sociais, ao mesmo tempo que lhe impõe o cumprimento de  deveres e prerrogativas. 

Esse vínculo de pertencimento à sociedade estatal – ou “à cidade”, no sentido  original da Cidade-Estado grega – implica uma série de direitos e obrigações,  cuja realização depende de estruturas organizadas pelo Estado. Assim, a  cidadania exige que o Estado, como representante dessa sociedade organizada,  se encarregue de estruturar as políticas e recursos materiais necessários para  que esses direitos sejam efetivados, além de prover os mecanismos jurídicos de  sua proteção.

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Estabelecido esse primeiro fundamento, cabe agora uma segunda premissa de  caráter lógico: a efetivação de direitos – sua concretização através de políticas  públicas e proteção jurídica – deve estar em consonância com o contexto atual. 

No cenário atual, caracterizado pela digitalização de relações e serviços e pela  crescente disponibilidade de tecnologias para aprimorar a eficiência das  atividades públicas, não adaptar as políticas públicas a esses avanços  representa uma falha tão grave quanto a própria ausência dessas políticas.  Ignorar ou negligenciar as ferramentas e desafios impostos por esse contexto é,  em última análise, comprometer a própria concretização dos direitos. 

Vivemos, portanto, em um contexto de digitalização das experiências humanas  – econômicas, políticas, sociais e jurídicas. A cidadania, nesse sentido, deve  também se expressar digitalmente. Surge, assim, a necessidade de definir uma  “cidadania digital” que impõe ao Estado o dever de adequação para garantir  direitos e prerrogativas, entre os quais se destaca o acesso à justiça. 

No Brasil, a Defensoria Pública é responsável por assegurar o acesso à justiça  como um direito fundamental. Assim, sem relegar sua atuação presencial à  população historicamente vulnerabilizada, é essencial que essa instituição adote as tecnologias mais modernas em suas funções, com vistas a garantir os direitos  da população em situação de vulnerabilidade. 

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Considerando o cenário de exclusão digital que atravessa camada expressiva  da população paulista, é evidente que a digitalização deve se constituir como  mecanismo complementar de ampliação do acesso à justiça sem impactar ou  restringir uma atuação que priorize o contato pessoal e a oralidade nos  atendimentos. Entretanto, isso não a torna uma necessidade menos urgente e  essencial

No caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, essa urgência é ainda  mais acentuada, dada a vagareza histórica do processo de expansão da  instituição. Quando de sua criação, em 2006, a Defensoria paulista herdou da  extinta Procuradoria de Assistência Judiciária unidades em 22 comarcas.  Passados mais de 18 anos e realizados nove concursos de membros/as, a  Defensoria ainda atua apenas em 48 municípios. 

Não se ignoram as dificuldades de estruturar uma instituição do porte que a  Defensoria Pública de São Paulo precisa ter para atuar no Estado mais populoso  do país. Mas a atual conjuntura permite que esse processo seja acelerado,  sobretudo em demandas sensíveis como aquelas que envolvem pessoas presas  injustamente. 

É isso que pretende o grupo de pesquisa em inteligência artificial e precedentes  qualificados, que foi lançado recentemente pela instituição. O primeiro foco de  atuação se deu a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e  que deu origem ao Tema 506. Vale destacar que foi a própria Defensoria de São  Paulo que construiu a tese da inconstitucionalidade do tipo penal e levou o caso  ao STF. 

O grupo precisava encontrar meios de identificar os processos em que houve  condenação por porte de até 40 gramas de cannabis sativa. O objetivo era  pleitear a aplicação retroativa da decisão do STF, sobretudo nas condenações  oriundas de comarcas que não contam com a atuação direta da Defensoria  Pública. 

Após as Secretarias de Segurança Pública e de Administração Penitenciária,  além do próprio Tribunal de Justiça, apontarem a inviabilidade técnica de buscar  os casos, foi necessário criar uma tecnologia capaz de selecionar os processos  que se enquadravam nos parâmetros da decisão. Desenvolveu-se, assim, um  modelo de processamento de texto que utiliza palavras-chave – de acordo com  critérios previamente estabelecidos por defensores/as – para detectar processos  criminais elegíveis.  

A modelagem do algoritmo de processamento de linguagem natural (PLN) tinha  como meta encontrar processos criminais relativos à lei de drogas, em  circunstâncias onde a única droga encontrada foi a maconha e que a quantidade  apresentada em juízo não excedesse o limite de 40 gramas. 

Para construir este modelo de PLN, utilizamos plataformas de código aberto R  Studio, Google Colab e uma conta gratuita do ChatGPT. A base de dados foi o  banco de sentenças do TJSP, que é de acesso público e contava com cerca de  700 mil processos registados até março de 2024.  

No quantitativo inicial de cerca de 700 mil casos do banco de sentenças, foram  separados apenas aqueles que versavam sobre crimes relacionados à lei de  drogas, categorizados no banco como “Tráfico de Drogas e Condutas Afins”. Em  seguida, foi aplicado o segundo filtro com um conjunto de termos relacionados a  maconha como: “cannabis”, “cannabis-sativa”, “maconha” etc. 

A essa altura os filtros já haviam selecionado “apenas” 198.879, uma quantidade  ainda impossível de ser analisada manualmente pelos Defensores/as Público/as  que compõem a instituição. Aplicou-se, então, mais um filtro composto por  palavras-chave que se referiam a uma variedade de drogas diversas da  maconha: “cocaína”, “crack”, “lsd”, “ecstasy”, “md”, “k9”, “k4”, “cocaína”, “coca”,  “bala”, “balinha”, “cristal”, “lóló” etc. Desse modo, foram encontrados 22.497  processos onde a única droga citada era a maconha, quantidade ainda bastante  elevada para a análise humana. 

Na sequência, foram gerados números inteiros e decimais acima de 40,  acompanhando também padrões textuais comumente usados pelo judiciário  para declarar quantidades de drogas nas peças processuais: “41g – 42g – 43g…”,  “40,1g – 40,2g – 40,3g…”, “40,01g – 40,02g – 40,03g…”, “41 gramas – 42 gramas  – 43 gramas…”, “40,1 gramas – 40,2 gramas – 40,3 gramas…”, “40,01 gramas – 40,02g gramas – 40,03 gramas”. O resultado da aplicação deste filtro no conjunto  de 22.497 processos onde a única droga citada era a maconha eliminou mais  19.752 da análise de membros/as da Defensoria, pois se referiam a quantidades  acima de 40 gramas.  

Por fim, após a utilização de mais de 4 mil filtros, obteve-se a lista de 2.745  processos criminais passíveis de aplicação do tema 506 do STF. Em outras  palavras, as ferramentas tecnológicas filtraram 2.745 processos num universo  de aproximadamente 200 mil, o que seria inviável de ser feito por seres  humanos.  

São quase três mil pessoas que, com a ajuda da inteligência artificial, podem ter  direito à absolvição e desencarceramento, em razão da aplicação retroativa da  decisão paradigmática do STF. 

Esses casos já estão sendo distribuídos a mais de cem Defensores/as  Públicos/as de São Paulo, que ainda deverão analisar o conjunto probatório de  cada processo e corrigir eventuais distorções dos algoritmos. 

Até o momento foram analisados cerca de 400 processos e em 55% deles foi  possível a atuação em favor da pessoa condenada. Mantida essa métrica, ao  final da atuação terão sido beneficiadas mais de 1500 pessoas. Pessoas que,  sem o uso da inteligência artificial, poderiam permanecer presas e sem acesso  à justiça.

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