A morte dos processos de recuperação judicial e falência

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O PL 3/2024, encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados em 10 de janeiro de 2024 com propostas para alteração da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (LFRE), tramita em regime de urgência e travará a pauta de votações na Câmara a partir desta terça-feira (19). A comunidade jurídica reagiu prontamente e de forma unânime contra a aprovação do projeto da forma como proposto. No entanto, a notícia é de que o PL será levado à votação em breve.

No último sábado (16), foi divulgado o substitutivo do PL, elaborado pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), que traz um enorme número de alterações e inovações à LFRE. Embora algumas previsões sejam importantes e positivas, o balanço final do substitutivo ainda é desastroso. Além de não corrigir os graves equívocos e sanar algumas das omissões da versão original do PL, o substitutivo amplia as modificações à LFRE, inclusive para atingir diretamente (e aniquilar) o procedimento de recuperação judicial, sem qualquer nexo com a exposição de motivos que, supostamente, justificariam a propositura do projeto.

A aprovação do texto do substitutivo seria desastrosa e representaria a própria morte dos processos de recuperação judicial e de falência, provocando o efeito contrário ao pretendido pelos Poderes Executivo e Legislativo. Os magistrados precisariam adotar soluções particulares para evitar prejuízos às empresas e aos credores, sem qualquer uniformidade, gerando um infindável volume de recursos, que tornariam o processo ainda mais moroso do que é hoje, com o aumento da insegurança jurídica e a inevitável perda de valor dos ativos.

A nosso ver, embora o PL seja oportuno e proponha alterações e inovações interessantes para o processo falimentar, o texto original já merecia significativo aprimoramento, o que requeria o devido debate com a sociedade. Já o substitutivo, apresentado em curtíssimo prazo, demanda uma análise ainda mais cuidadosa, em especial considerando o volume de alterações propostas jamais discutidas com a sociedade.

Em uma primeira leitura, é possível verificar que o substitutivo contém equívocos crassos, como a imposição de um mandato de dois anos ao administrador judicial, a imediata substituição de administradores em falências em curso, a fixação de um teto para sua remuneração com base em critérios dissociados da realidade do mercado, o recrudecimento dos quoruns de instalação e aprovação de certas matérias pela assembleia geral de credores (AGC), dentre outros.

A limitação de espaço nos faz reduzir nossa análise aos pontos específicos do substitutivo relativos à atuação do administrador judicial e sua substituição pelos credores, além da alteração dos quóruns da AGC. A eventual aprovação das alterações propostas resultaria em prejuízos inestimáveis aos processos de recuperação judicial e falência.

Em suma, o PL prevê que, em caso de falência do devedor, os credores poderão eleger um gestor fiduciário, que substituirá o administrador judicial nomeado pelo Juízo e ficará responsável pela implementação de eventual plano da falência aprovado pelos credores. O substitutivo mantém esse racional e esclarece que as figuras do administrador judicial e do gestor fiduciário devem ser excludentes.

Propomos a alteração desta lógica para possibilitar a coexistência entre tais figuras, a partir da segregação e cisão das atividades do administrador judicial próprias de auxiliar do Juízo (e.g. publicação de avisos, exame da escrituração do devedor, verificação de créditos, arrecadação de bens, investigação e elaboração de relatórios, etc.) daquelas atividades próprias de gestão (e.g. administração e alienação de bens, pagamento dos credores), concedendo aos credores a faculdade de escolher um gestor para executar esse segundo grupo de atividades.

A segregação das atividades e a possibilidade de os credores elegerem um gestor para exercer parte das atividades do administrador judicial deveriam vir acompanhadas de disposições ainda mais específicas acerca da responsabilidade civil e criminal do gestor, inclusive caso privilegie os credores que o elegeram em detrimento dos demais, o que foi resolvido apenas em parte pelo substitutivo.

Outra alternativa para aprimorar o processo de falência, seria possibilitar que os credores deliberem pela substituição do administrador judicial nomeado pelo Juízo por outro profissional ou empresa que julguem capacitada, para exercício de todas as funções atribuídas ao cargo. É o que propõe o PL, porém denomina o profissional de gestor fiduciário.

No cenário de segregação das atividades, nada deveria impedir a eventual eleição pelos credores de um gestor para conduzir as atividades de gestão e alienação dos ativos e, em paralelo, a substituição do administrador judicial nomeado pelo Juízo por outro administrador judicial da confiança dos credores.

Ademais, os quoruns de instalação e deliberação da AGC não deveriam ser modificados, conforme previsto no substitutivo. Como grande parte dos credores é omissa nos processos de recuperação judicial e falência, a tendência é que a AGC reste frustrada. Nesse particular, o substitutivo tem o potencial de impedir que qualquer plano de recuperação judicial seja legitimamente aprovado, por absoluta impossibilidade de se atingir, sem a utilização de mecanismos escusos pelos devedores, os quoruns de instalação e aprovação propostos. É a própria morte do processo de recuperação judicial, tão essencial para todos os setores da economia brasileira.

Na prática, a exigência da presença da maioria dos credores (cabeças) para a instalação da AGC, inclusive em segunda chamada, tornará inviável também a substituição do administrador judicial por eventual gestor fiduciário, a aprovação do plano da falência e a deliberação de quaisquer outras matérias do interesse dos credores, o que impede a implementação das propostas do próprio PL.

A convocação de AGC para substituição do administrador somente deveria acontecer por provocação de credores representando percentual mínimo de créditos, após a apresentação da relação de credores apresentada pelo administrador judicial, a fim de se evitar que a votação seja realizada com base na lista apresentada pelo devedor (quando existente), o que poderia dar margens a manipulações e fraudes.

Sem prejuízo, o PL é sintético quanto à excessiva judicialização e burocratização dos atos processuais da falência. O processo de falência necessita de uma efetiva e urgente ruptura de paradigma, mediante a desburocratização e a desjudicialização dos atos processuais, a substituição dos agentes responsáveis pelas práticas de atos sem conteúdo jurisdicional e o aprimoramento das regras de prestação de contas, fiscalização e resolução de conflitos de interesse, o que não está atualmente contemplado de forma satisfatória pelo PL.

Em linhas gerais, as propostas originais do PL de alterações à LFRE ainda demandam adequações relevantes. É preciso assegurar o amplo debate do projeto, em especial considerado o amplo espectro de modificações contidas no substitutivo, que têm, inclusive, o potencial de fulminar de morte os procedimentos de recuperação judicial e falência, essenciais para o saneamento da economia brasileira. O debate das propostas não parece ser compatível com a urgência invocada pelo governo e com a iminente votação de seu substitutivo pela Câmara, sobretudo sem as contribuições trazidas pela comunidade jurídica.

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