A recente decisão do STF sobre as bets

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No dia 15.11.2024, foi encerrado o julgamento virtual da medida cautelar pleiteada nas ADIs 7.721 e 7.723, que impugnavam dispositivos da Lei n. 14.790/2023, que disciplina as apostas de quota fixa. Na ocasião, foi confirmada decisão monocrática do Ministro Luiz Fux que já havia deferido parcialmente as medidas cautelares requeridas para dois efeitos:

  1. conferindo interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 9º da Lei n. 14.790/2023, assegurar que a regulamentação elaborada pelo Poder Executivo Federal especificamente prevista na Portaria SPA/MF n. 1.231, de 31 de julho de 2024, tenha aplicação imediata, no tocante às medidas supramencionadas referentes à publicidade quanto às crianças e adolescentes”; e

  2. para que sejam implementadas medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres, até a conclusão do julgamento de mérito das referidas ações diretas de inconstitucionalidade”1.

Como se pode observar, o propósito essencial da liminar é vedar a publicidade infantil e o uso de recursos de programas sociais, como o Bolsa-Família e o BPC – Benefício de Prestação Continuada, em apostas online, conhecidas como bets. Consequentemente, foram suspensos dispositivos da Lei 14.790/23, sob o fundamento da necessidade de se proteger menores e famílias vulneráveis contra os impactos financeiros e psicológicos das bets.

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Em seu voto, o Ministro Luiz Fux salienta que as manifestações realizadas na audiência pública sobre o tema apresentaram evidências dos impactos nefastos das apostas na saúde mental de crianças e adolescentes e nos orçamentos familiares, particularmente de pessoas beneficiárias de programas sociais e assistenciais, sem que haja proteção suficiente para esses dois grupos.

Consequentemente, seria imperiosa a adoção de medidas tanto para vedar publicidade e propaganda das referidas atividades que tenham crianças e adolescentes como público-alvo, como também para impedir participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais.

Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes igualmente constatou a necessidade de melhor elaboração de arcabouço regulatório sobre o tema e também do desenvolvimento de regulação estatal para proteger tais grupos vulneráveis e para mitigar e punir os responsáveis por manipulações e fraudes perpetradas.

Ainda é preciso destacar o voto do Ministro Flávio Dino, que ressaltou, dentre várias questões, a necessidade de prevenção aos transtornos do jogo patológico, missão para a qual seria questionável a competência e a expertise do Ministério da Fazenda, do que decorreria o consequente risco de proteção insuficiente a direitos fundamentais concernentes à saúde da população brasileira.

Como de pode observar, a questão remete à discussão sobre o papel do Estado na proteção das pessoas, especialmente diante de grupos vulneráveis, incluindo aqueles que, como os beneficiários de programas assistenciais, recebem recursos públicos.

Não obstante, é importante salientar que a discussão sobre as bets transcende os grupos vulneráveis, uma vez que há evidências de impactos nefastos mesmo sobre pessoas que não podem ser consideradas aprioristicamente como merecedoras de uma proteção especial. Afinal, falar em apostas é ter que considerar o problema do vício e suas consequências tanto no âmbito individual como no âmbito coletivo.

Assim, subsiste o problema de saber se, mesmo para pessoas não vulneráveis, é exigível que o Estado as proteja diante de iniciativas que, como as bets, podem trazer consequências extremamente negativas para suas vidas e para a própria economia do país.

Como mostra recente reportagem do Uol2, a questão das bets já se tornou um problema de saúde pública, podendo se afirmar que o Brasil vive uma verdadeira epidemia de vício em apostas online, com consequências alarmantes, dentre as quais as ora mencionadas:

  1. estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) em parceria com a AGP Pesquisas mostrou que 63% de quem aposta no país teve parte da renda comprometida com bets, dos quais 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos; e

  2. relatório divulgado pelo Banco Central revelou que os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em sites de apostas esportivas somente no mês de agosto de 2024, o que equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês.

Outro problema das bets tem sido a queda do consumo e os impactos deletérios para diversos setores econômicos, notadamente o varejo3. Ao tentar dimensionar os prejuízos, a B34 mostra alguns dos números que ajudam a entender as razões do impacto das bets na economia como um todo: R$ 23,9 bilhões foi o gasto líquido dos brasileiros com apostas online nos 12 meses encerrados em junho de 2024 e 86% dos brasileiros que fazem apostas esportivas online estão endividados.

De acordo com dados mais recentes, em quatro anos o valor de recursos aplicados por brasileiros em bets dobrou, atingindo a marca de R$ 68,2 bilhões em 12 meses, volume que representa 0,62% do PIB, 0,95% do consumo total e 1,92% de toda massa salarial brasileira. Por essa razão, as bets começam a transformar a economia nacional, já que o gasto com apostas já representa o equivalente a 76% das despesas com lazer e cultura das classes D e E e 5% dos gastos com alimentação das famílias mais pobres5.

É nesse contexto que surge a importante discussão sobre a necessidade de proteção mais ampla às pessoas e à própria economia, bem como o papel e a legitimidade do Estado para tal propósito.

É claro que os mais libertários tenderão a defender que as pessoas devem ser livres e a principal consequência disso é a necessidade de serem responsáveis por suas escolhas, não cabendo ao Estado interferir nesse processo. Já os mais intervencionistas tenderão a ressaltar o papel do Estado em proteger as pessoas de si mesmas diante de escolhas que podem causar grandes danos a elas próprias e, como no caso, também à sociedade e à própria economia.

Entretanto, o fundamento de liberdade normalmente invocado pelos libertários precisa ser colocado em perspectiva, diante das limitações de racionalidade das pessoas e dos efeitos do vício, circunstâncias que podem minar por completo os processos decisórios verdadeiramente autônomos no caso das apostas.

Como bem explica Daniel Kahneman6, embora haja muita coisa em jogo no debate entre os libertários, representados pela Escola de Chicago, e os economistas comportamentais, a liberdade não é uma delas, pois se trata de um valor não contestado. O problema é que a vida é mais complexa para os economistas comportamentais do que para os adeptos ferrenhos da racionalidade humana, para os quais agentes racionais não cometem enganos e a liberdade não apresenta custo algum.

Ocorre que o homem de carne e osso apresenta inúmeras limitações de racionalidade que podem influenciar em suas decisões. Daí por que seria legítimo que o Estado pudesse intervir em algumas situações, especialmente para proteger as pessoas de escolhas mal informadas ou não pautadas em elementos mínimos de racionalidade. Afinal, ao assim fazer, o Estado estaria protegendo exatamente a liberdade das pessoas e não a restringindo indevidamente.

Tais preocupações tornam-se ainda mais legítimas quando se leva em consideração o vício psicológico e as inúmeras estratégias de marketing, persuasão indevida e mesmo manipulação que podem ser utilizadas, o que é mais um fundamento para dizer que as pessoas, nesses estados, não estão exercendo propriamente as suas liberdades.

Dessa maneira, a decisão do STF apenas inicia um debate importante e necessário sobre o papel do Estado em proteger as pessoas de si mesmas. Quando estamos falando de processos decisórios em que a própria autonomia dos sujeitos está comprometida, temos boas razões para justificar a proteção estatal, ainda mais quando os efeitos das decisões individuais igualmente trazem efeitos nefastos para a sociedade e para a economia.

3 https://www.gazetadopovo.com.br/economia/bets-apostas-online-preocupacoes-economia-riscos/

6 KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar. Duas formas de pensar. Tradução de Cassio Leite. São Paulo: Editora Objetiva, 2011.

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