A redundância da PEC das decisões monocráticas

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Na tragédia de Shakespeare, Romeu e Julieta padecem de um amor proibido pelo ódio entre suas famílias, Montague e Capulet.

Ao professar sua paixão, Julieta pede ao rapaz que renuncie ao seu sobrenome para que possam viver juntos. Afinal, o nome, sozinho, não tem valor próprio. É mera forma. Não tem rosto, pés, mãos, nem nada que identifica alguém. Romeu continuaria sendo o mesmo homem amado por Julieta, ainda que tivesse outro nome.

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Daí Shakespeare proclama a célebre frase: “what’s in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet”[1]. Ou “o que há num nome? Aquilo que chamamos de rosa, se tivesse qualquer outro nome, teria o mesmo doce perfume”.

A fórmula da rosa de Shakespeare – da essência sobre a forma – parece não ter sido considerada pela CCJ da Câmara dos Deputados na última quarta-feira (23), quando deu prosseguimento à PEC 8/2021[2].

Afora a “Katchanga”[3] da PEC 28/2024, a PEC das decisões monocráticas quer, com uma forma diferente, alcançar finalidade já atendida pela Emenda 58/2022 ao Regimento Interno do STF.

Ao nosso ver, a alteração regimental – trazida a cabo, tinha que ser, por uma outra Rosa, então ministra presidente da Corte – já assegurou a reserva de plenário no julgamento das cautelares, ao determinar que os relatores submetam suas liminares “imediatamente ao Plenário ou à respectiva Turma para referendo, preferencialmente em ambiente virtual” (art. 21 do RISTF).

Afinal, o que está por trás dessa tentativa do Parlamento de reduzir os poderes cautelares dos ministros do STF?

O verdadeiro problema por trás das decisões monocráticas: o silenciamento do pleno

De fato, até pouco tempo atrás, era comum a concessão de cautelares monocráticas que permaneciam em vigor por mais de seis anos, em média[4].

Combinado com o poder de liberar ou não as decisões para apreciação colegiada e de definição arbitrária de pauta, as tutelas provisórias se tornavam definitivas por via transversa, sem real controle do pleno, cuja competência terminava por usurpada[5].

Para não ficar na discussão abstrata, relembramos o caso da medida cautelar na ADI 5.017.

O então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, alegando duvidoso vício de iniciativa reservada ao Judiciário, suspendeu a Emenda Constitucional 73/2013, que criava os TRFs da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões.

A decisão foi proferida em 2013. Escrevemos em 2024 e a cautelar ainda não foi submetida à referendo. Para piorar, a ADI provavelmente perdeu objeto pelo decurso do tempo e pela recente criação do TRF6, embora ainda não haja decisão expressa nesse sentido. É que o art. 2º da EC 73/2013 dava o prazo de apenas seis meses para instalação dos novos TRFs – prazo este já consumado, evidentemente.

Ou seja, uma Emenda Constitucional, aprovada em dois turnos por três quintos das casas do Congresso, foi, na prática, definitivamente declarada inconstitucional por uma decisão singular, supostamente provisória. Tudo isso à revelia da reserva de plenário e do requisito da reversibilidade das tutelas de urgência.

Quer dizer, o verdadeiro problema por trás das “liminares individuais definitivas” era este: o poder de um ministro, sozinho, eliminar a manifestação de mérito do Pleno sobre a inconstitucionalidade de uma lei, em violação ao art. 97 da Constituição Federal.

PEC procura atacar um problema já resolvido

Independentemente do mérito da PEC, o fato é que a Emenda Regimental 58/2022 já resolveu esse problema das cautelares monocráticas definitivas, com a determinação de referendo imediato das decisões via plenário virtual.

Hoje, não é mais possível que uma liminar monocrática se torne definitiva, por via transversa, como ocorria antes. E, ainda que se diga que a forma encontrada pela Emenda Regimental foi inadequada por ainda permitir a concessão de cautelares individuais, o importante é que STF conseguiu atingir o objetivo maior – que é assegurar a manifestação do pleno em tempo razoável.

Aqui, chamamos atenção especial para o art. 277 do Código de Processo Civil: “quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”.

O art. 277 traduz a fórmula shakespeariana para a linguagem do processo. Estabelece que as normas processuais – tal como a PEC 8/2021 e a Emenda 58/2022 – não são um fim em si mesmo.

Antes, são uma forma, um meio para alcançar certa finalidade. E a forma errada não pode ser obstáculo se a finalidade é atingida in totum. Do contrário, o processo corre o risco de “desvirtuar-se em estorvo da Justiça”, no dizer de Galeno Lacerda[6].

Em verdade, essa disposição legal está intimamente ligada à garantia fundamental do acesso à Justiça, constante do art. 5º, XXXV, da CF: a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Não pode o mero vício formal impedir a tutela jurisdicional do direito material, especialmente a tutela cautelar de urgência, quando tiver sido alcançada a finalidade que justificava a forma prescrita.

Gostemos ou não, essa lógica – de ordem constitucional, frisamos – vale para as liminares ad referendum em controle de constitucionalidade.

Afinal, qual é a finalidade por trás da Emenda Regimental 58/2022 e da PEC 8/2021, enquanto normas processuais?

Rigorosamente a mesma: em deferência aos Poderes eleitos, garantir a manifestação do Tribunal Pleno sobre a suspensão de leis inconstitucionais, na linha do art. 97 da CF.

Daí a redundância da PEC 8/2021.

Seja pela concessão direta da medida cautelar pelo colegiado, seja pelo referendo imediato da medida cautelar, o Pleno se manifesta e a finalidade da norma processual é alcançada. Independentemente do nome, a rosa mantém seu perfume.

Ameaça de ‘nulidade’ da cautelar monocrática é vazia

A PEC 8/2021 pode, ainda, gerar outros tipos de distúrbios processuais. Isso porque o texto aprovado pela CCJ dispõe que as decisões cautelares monocráticas serão nulas.

Ora, não há dúvida de que, se o texto da PEC for aprovado, que as liminares monocráticas serão nulas. Isso se, pelo ordenamento vigente, já não forem inválidas, considerando que a Lei 9.868/99 autoriza apenas o presidente do STF a conceder liminar e somente durante o recesso. Como costuma dizer o ministro Gilmar Mendes sobre as liminares em processos objetivos, legem habemus[vii].

Porém, a única forma de apreciar a nulidade da liminar monocrática é pela manifestação do colegiado em recurso de agravo interno, eis que até mesmo as decisões judiciais nulas são válidas e eficazes até decisão em sentido contrário[8].

A ironia é que essa decisão do tribunal pleno, que aprecia a nulidade da cautelar monocrática, é justamente o ato processual que lhe convalida o vício.

O silêncio do pleno – que era a causa da nulidade da liminar – deixa de existir com a manifestação do pleno. Ou seja, num eventual agravo contra a liminar, o colegiado sequer terá condições para efetivamente decretar a nulidade da decisão cautelar, até por conta da primazia da decisão de mérito.

Deve, desde logo, revogar ou manter a cautelar pelos seus fundamentos materiais de plausibilidade do direito e perigo da demora, sob pena de negativa de prestação jurisdicional.

Na verdade, o debate sobre as liminares monocráticas no STF ressuscitou problema já resolvido pela doutrina de processo civil comum: a possibilidade de concessão de cautelares por juízes absolutamente incompetentes. Aliás, é antigo o brocardo: quando est periculum in mora incompetentia non attenditur.

E o art. 97 da CF e a PEC 8/2021, quando estabelecem a reserva de plenário, constituem tão somente norma de (in)competência absoluta, pelo critério funcional/hierárquico.

No entanto, é pacífico que os órgãos jurisdicionais, mesmo tendo consciência de sua incompetência absoluta, podem (e devem) conceder tutelas de urgência, para evitar o perecimento de direito[9], remetendo o processo em seguida para o juízo competente.

O vício de incompetência absoluta, pelo art. 64, § 4º, do CPC[10], não retira imediatamente a validade e eficácia da decisão cautelar, que fica conservada até que outra seja proferida pelo juízo competente.

E vamos além: há hipóteses em que, afora a incompetência, é possível a concessão de medida cautelar até mesmo quando não há probabilidade de direito, a fim de garantir a futura apreciação do direito pelo tribunal.

Citamos, aqui, os mandados de segurança em que, apesar de denegada a segurança, os juízes de primeira instância mantêm excepcionalmente a eficácia das liminares até o julgamento da apelação, porque, do contrário, o eventual direito pereceria antes de ser apreciado pelo Tribunal, em ofensa à garantia do duplo grau de jurisdição[11].

Conclusão

No fundo, as críticas às liminares ad referendum revelam uma compreensão formalista de como realmente funciona a tutela cautelar à luz do acesso à Justiça e da Constituição, que se preocupa, acima de tudo, com assegurar os direitos e a utilidade da posterior deliberação do colegiado, e não com a observância literal das regras procedimentais.

É desimportante se o pleno do STF vai se manifestar sobre a medida cautelar diretamente ou ad referendum, desde que ele se manifeste em tempo razoável. Isto é, desde que as rosas conservem seu perfume.

Então, reiteramos: a PEC 8/2021 gasta energia com problema já resolvido e, por isso, mostra-se redundante.

[1] Obra completa disponível em domínio público: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/mi000032.pdf>

[2] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/10/09/ccj-da-camara-aprova-pec-que-limita-decisoes-individuais.htm

[3] STRECK, Lenio Luiz. Com ‘Katchanga Real’, Congresso quer colocar o STF contra as cordas. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-out-14/com-katchanga-real-congresso-quer-colocar-o-stf-contra-as-cordas>

[4] FALCÃO, Joaquim; HARTMANN, Ivar Alberto; CHAVES, Vitor P. III Relatório Supremo em Números: o Supremo e o tempo. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2014.

[5] ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: o Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estudos CEBRAP, v. 37, p. 13-32, 2018.

[6] LACERDA, Galeno de Vellinho. O Código e o formalismo processual. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 21, n. 0 (1983), p. 17.

[7] Fala do Min. Gilmar Mendes em entrevista concedida no programa Reconversa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FHvUPww_xXs&t=15s

[8] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 146.

[9] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Do processo cautelar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 155.

[10] Art. 64, § 4º Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente.

[11] Trata-se de conhecida exceção à Súmula nº 405/STF. Cf. AgRg no AREsp n. 183.378/SP, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 18/12/2012, DJe de 5/2/2013.

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