A reforma tributária, a defesa do meio ambiente e a valorização do catadores

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A reforma tributária não apenas estabeleceu um sistema de tributação sob valor agregado, ela também elevou a proteção ao meio ambiente como um princípio constitucional do Sistema Tributário Nacional, bem como da simplicidade; transparência, cooperação e justiça tributária. (art.145, §3º).

Um dos principais desafios do Brasil para avançar na construção de um país ambientalmente mais sustentável é o fomento à reciclagem. Reaproveitar os materiais e resíduos descartados, por meio da reciclagem, reduzir o volume de matéria virgem extraída da natureza e, portanto, na sustentabilidade da exploração de recursos naturais e na diminuição dos materiais depositados em aterros e lixões.

Para que o país avance no assunto, é fundamental que as políticas públicas sejam orientadas no sentido de promover a reciclagem dos diversos materiais aptos a esse tratamento. A reforma tributária é uma das principais medidas para tanto, devendo tratar adequadamente a reciclagem de materiais e o trabalho dos maiores responsáveis para que ela aconteça: os catadores. Estes, segundo estimativas, são responsáveis pela coleta de 90% de tudo que é reciclado no país1.

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A reforma tributária, que está em curso no país, estabeleceu a proteção ao meio ambiente como um de seus princípios e determinou incentivos para atividades econômicas mais sustentáveis, de forma a alinhar a política tributária com as previsões constitucionais de proteção e preservação ambiental. Contudo, há pontos na sua regulamentação para serem aprimorados, de forma a aprofundar o fomento à reciclagem e a valorização do trabalho dos catadores de materiais recicláveis, em consonância com o que prevê a Constituição Federal e a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

A primeira etapa da reforma tributária foi concluída com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 132. Resumidamente, o novo sistema visa simplificar as regras tributárias com a substituição do ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Além de aglutinar e harmonizar os tributos incidentes sobre o consumo, a EC nº 132 reconheceu a necessidade de estimular a reciclagem e autorizou a concessão de crédito aos contribuintes que adquirem resíduos comercializados por pessoas físicas, cooperativas ou outras formas de organização popular. A forma como esse crédito pode ser usufruído foi detalhada na proposta de regulamentação da reforma tributária, que é o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68, atualmente em tramitação no Senado Federal.

O texto atual do PLP nº 68 prevê um crédito presumido a quem adquirir materiais recicláveis de “coletores incentivados”, no montante de 20% (vinte por cento), sendo 13% de IBS e 7% de CBS. Na prática, de forma resumida, isso significa que o adquirente do material poderá descontar, em suas obrigações tributárias futuras, o valor gerado pelo crédito da compra do material de coletores incentivados. Também consta na proposta uma definição do que são os “coletores incentivados”, sendo as pessoas físicas que executam a coleta ou triagem de resíduos ou cooperativas/associações que reúnem essas pessoas exclusivamente para essa finalidade.

O primeiro ponto a ser aprimorado do PLP nº 68 é garantir que não haverá aumento da atual carga tributária incidente sobre as operações envolvendo a aquisição de materiais recicláveis. Há um risco alto de que ocorra uma ampliação da carga tributária incidente sobre as operações de materiais recicláveis, especialmente realizadas pelas cooperativas. Atualmente, incidem nessas operações ICMS, PIS e Cofins, sendo que a carga tributária somada dos três tributos pode variar entre 0% – em razão das possibilidades de isenções que existem – e chegar até 22,75%2. A reforma tributária substituirá esses tributos pelo IBS e CBS e, ainda que não haja uma definição do valor de suas alíquotas, a previsão do governo é que a alíquota do IBS seja de 17,7% e do CBS de 8,8%, o que resultaria em uma carga tributária de 26,5%. Se for adiante esse aumento de carga tributária, haverá uma sobrecarga nas cooperativas/associações e uma redução de sua capacidade de competição contra outros ofertantes de matérias virgens extraídas da natureza que são substitutos próximos aos reciclados, de maneira a eliminar a atratividade da indústria para adquirir materiais oriundos da reciclagem.

Tal aumento da carga tributária é completamente contrário à Constituição devido a sua proteção às atividades ambientalmente sustentáveis e socialmente eficientes, conforme entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do Recurso Extraordinário 607.109/Paraná (RE 607.109/PR) a partir do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes. A decisão do STF é clara ao reconhecer o comando constitucional de tratamento tributário diferenciado para incentivar a indústria de reciclagem, em detrimento da extração de matéria virgem, o que não deve se limitar apenas em incentivos para indústria que adquire os materiais recicláveis, mas também às cooperativas que reúnem os catadores que ofertam esses materiais.

Outra sugestão de melhoria no PLP nº 68 é a ampliação das operações envolvendo materiais recicláveis e catadores que poderão usufruir do crédito presumido. Atualmente, apenas as aquisições estão abarcadas, sendo ignorada a sistemática dessas operações, nas quais o material destinado à reciclagem pode percorrer um caminho complexo do catador até cooperativa, podendo ser objeto de uma relação de compra e venda ou da prestação de diferentes serviços, e somente após esse processo, o material é adquirido pela indústria para fins de reciclagem. A expansão das operações que podem utilizar o crédito presumido visa corrigir uma distorção da proposta atual, em que a indústria da reciclagem recebe um tratamento tributário diferenciado ao poder usufruir do crédito gerado na aquisição do material, enquanto a cooperativa/associação de catadores sofre incidência ordinária da IBS e CBS, sem previsão de tratamento específico e, portanto, exposta ao pagamento da alíquota cheia dos tributos.

A restrição prevista no PLP nº 68 de que as cooperativas e/ou associações, para poderem gerar o crédito, devem atuar exclusivamente na coleta e/ou triagem de materiais destinados à reciclagem também é um ponto de preocupação. Na realidade, as cooperativas e associações de catadores prestam uma série de serviços para terceiros (públicos e privados) que as contratam para fins de treinamento, conscientização, preparação e desenvolvimento de ações com relação à reciclagem, reutilização e/ou a logística reversa de materiais, bem como podem ser contratadas para executar serviços públicos de limpeza urbana e outras atividades inerentes de manejo de resíduos sólidos. Impor a restrição de atuar somente na coleta e/ou triagem de materiais recicláveis é não só limitar a possibilidade das associações e cooperativas gerarem o crédito, como desestimular que esses atores realizem trabalhos que também são essenciais para a alavancagem da reciclagem no país.

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Uma quarta sugestão de aperfeiçoamento do PLP nº 68 é incluir a previsão expressa de não incidência dos novos tributos, IBS e CBS, nas operações envolvendo coletores incentivados realizadas no âmbito e/ou em decorrência de ato de cooperação, acordos setoriais, planos de gerenciamento de resíduos e/ou no fornecimento ou prestação de serviços ao titular do serviço público de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos.

Por último, sugere-se que o PLP nº 68 seja alterado para prever claramente a possibilidade de estados, Distrito Federal e municípios fixarem alíquota zero de IBS nas operações incentivadas envolvendo catadores e a coleta de resíduos e materiais recicláveis, como atualmente em vigor pelo Convênio n.: 61/2024, de forma a preservar a atribuição dos entes subnacionais de incentivar a destinação ambientalmente adequada no âmbito de seu território, em razão de sua competência tributária.

O incentivo à reciclagem de materiais e o fortalecimento do trabalho realizado por catadores estão inteiramente alinhados com os objetivos da reforma tributária, que além de buscar a simplificação das regras, pretende tornar o sistema tributário mais justo e fazer a economia brasileira crescer de forma sustentável. Com a reforma tributária, temos uma oportunidade ímpar de avançar na reciclagem e de promover um país social e ambientalmente mais justo e sustentável, não podemos desperdiçar essa chance.

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1 Para o cáIculo foi considerada a alíquota máxima de PIS de 0,65%, de Cofins de 3% e de ICMS de 19,1%. No caso deste último tributo, por ser um imposto estadual com alíquotas distintas em cada estado, foi realizada uma conta da média da alíquota geral dos estados, ainda que existam estados com alíquotas específicas menores para comercialização de materiais recicláveis.

2 GALLON, T.; MARZIALE, M. H. P. Condições de trabalho e saúde de catadores de materiais recicláveis na América latina: uma revisão de escopo. In: PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto; GOES, Fernanda Lira (Org.). Catadores de materiais recicláveis. Um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.

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