A saúde atual não precisa – nem deveria – ser digitalizada

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A saúde digital que estamos construindo é a que realmente queremos? Essa pergunta primordial talvez não tenha sido feita de forma extensiva por todos nós, agentes do setor.

Comecemos de um princípio básico: o sistema de saúde não precisa ser digitalizado. O sistema de saúde precisa ser transformado a partir da lógica digital. O que soa como uma sutil diferença semântica carrega, na essência, diferenças irreconciliáveis – e a opção por uma estratégia ou outra será determinante para o futuro que iremos construir.

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Tudo começa com a imprecisa lógica de que há dois sistemas: o público e o privado, também chamado de suplementar. O primeiro atende cerca de 75% da população, enquanto o segundo responde por 25%. Simples, não? Nem tanto.

Como não há fronteiras muito bem definidas no papel de cada agente, o ônus acaba sendo sempre do Estado. Quando uma pessoa que possui plano de saúde é atendida no Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, o setor público tem direito a pedir o ressarcimento – valor que, quando é pago, ocorre em uma janela entre um e dois anos.

Apenas em 2022, o valor desse financiamento indireto foi de R$ 1,1 bilhão, segundo a 15ª edição do Boletim Informativo – Utilização do Sistema Único de Saúde por Beneficiários de Planos de Saúde e Ressarcimento ao SUS.

Precisamos pensar, portanto, que temos apenas um sistema de saúde no Brasil, composto por dois braços: público e privado – com este último atuando de forma complementar na prestação de serviços e suplementar quando mantido por famílias ou empresas.

Com essa visão integralista, a saúde é constitucional e agenda de Estado, não podendo mudar a partir de decisões de governos temporários e tampouco ser estruturada por iniciativas desordenadas. É preciso que uma liderança isenta concentre a orquestração dos agentes e fique responsável também pelo uso estratégico dos dados – item elementar para a transparência.

Digitalizar os vícios

O sistema de saúde atual, pautado pela lógica do pagamento por serviço, não é sustentável. Para um agente ganhar, o outro necessariamente deve perder; o modelo está posto, portanto, pela competição, não pela cooperação.

Cada elo da cadeia – fonte pagadora (sendo pública ou privada) e fonte prestadora (hospital, clínica, laboratórios etc.) – ergue muros cada vez mais altos e impenetráveis para se proteger dos altos custos e defender suas margens, como se fossem ilhas, e não um ecossistema interdependente. Nessa briga, o elo mais fraco é, exatamente, quem deveria ser o centro do cuidado. Jogado a sua própria sorte nesse jogo de poder, o paciente usa, igualmente, as ferramentas que tem.

E qual é essa ferramenta? Sobreuso. Segundo o Instituto em Estudos de Saúde Suplementar (IESS), os desperdícios somaram entre R$ 30 bilhões e R$ 34 bilhões em 2022, montante que representa 11% a 12,7% da receita das operadoras.

Por não se sentir, e nem ser visto, como cliente, o paciente não confia nos elos mais fortes da cadeia e, assim, faz o que está a seu alcance para se manter seguro. Podemos culpá-lo? Não. Nós, como lideranças do setor, devemos nos culpar. Educamos mal o usuário. Ele não sabe que o dinheiro que a operadora perde, na verdade, é dele. Não importa se sai do bolso do empregador ou do seu próprio. Os preços dos convênios médicos estão inconcebíveis e seguirão tendo reajustes impraticáveis enquanto a lógica e as regras não mudarem.

É esse caótico cenário que queremos no futuro?

A resposta óbvia é não, mas o caminho pelo qual optamos seguir, como setor, é exatamente o contrário. A partir dessa lógica draconiana, onde cada parte tem como objetivo proteger seu negócio, a tecnologia é usada como ferramenta de salvaguarda, pelo qual se faz o possível ou para aumentar os ganhos ou para reduzir as perdas de cada uma dessas ilhas.

Essa é a digitalização da saúde.

Transformação a partir da lógica digital

Há uma ideia – infelizmente infundada, em nossa opinião – de que a simples digitalização desordenada entre os agentes do setor vai gerar dados que, por sua vez, permitirão uma maior transparência e, consequentemente, ajudarão a reduzir as distorções.

Sim, haverá transparência. Mas essa transparência nos contará qual verdade?

Dados permitem a construção de indicadores. E indicadores podem ser uma ferramenta poderosíssima de gestão – desde que, e somente se, forem usados de forma correta.

Indicadores devem derivar de um objetivo claro. Qual objetivo estamos perseguindo? Redução de custos para sustentabilidade das empresas? De quais custos, de quais empresas? Esses objetivos são traçados de forma isolada por agentes de mercado que sabidamente competem entre si e tentam proteger a si mesmos? Por essa visão, nunca haverá mudança. Se continuarmos produzindo indicadores que nos levem nessa mesma direção, a digitalização vai ser uma ferramenta para aumentar a aberração.

A transformação a partir da lógica digital pede, portanto, uso extensivo e inteligente dos dados. Mas a liderança sobre esses dados deve estar nas mãos de um agente isento, que busque o objetivo maior do setor, não o objetivo de curto prazo de seus agentes. Uma vez que o sistema seja visto como uma unidade integrada, a lógica muda. Como ocorre de forma bastante eficiente com o sistema brasileiro de geração de energia, outro serviço essencial: os agentes privados se organizam a partir de uma estratégia nacional.

Vivemos um momento ímpar, no qual a interoperabilidade e o uso de algoritmos podem ditar o rumo da desejada mudança ou acelerar a derrocada financeira do sistema. Se deixarmos que os conflitos de interesse sigam norteando as decisões sobre o futuro da saúde, já sabemos o destino.

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