ADPF 983: ‘bloqueio institucional’ e o controle judicial do processo legislativo

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Em 3/7/2023, o STF finalizou o julgamento da ADPF 983, ajuizada pelo governador de Minas Gerais em face da Assembleia Legislativa mineira. Segundo os argumentos do chefe do Poder Executivo estadual haveria uma omissão legislativa na falta de apreciação do PL 1202/2019, de sua autoria, que buscava autorizar o estado a ingressar no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), previsto na Lei Complementar 159/2017. Na ação, o governador requeria que o estado pudesse seguir no processo de adesão ao RRF “até que o Poder Legislativo Mineiro decida a matéria, no âmbito Projeto de Lei nº 1.202/2019”.

Na visão do requerente, haveria um “bloqueio institucional” por parte da Assembleia Legislativa ao não apreciar o mencionado Projeto de Lei, em violação aos princípios do federalismo cooperativo, sustentabilidade fiscal, aos direitos sociais e ao pagamento de precatórios, em razão da situação de extrema gravidade financeira que o estado se encontraria caso não aderisse ao RRF.

De outro lado, a Assembleia Legislativa apontou, além da inadequação da via eleita, a tentativa indevida de imposição de vontade política do Executivo em face do Legislativo em violação à separação de poderes e seu poder de agenda das matérias a serem votadas, como expressão de matéria interna corporis, além do fato de não dispor de todas as informações necessárias para apreciar o Projeto de Lei que deveriam ser enviadas pelo próprio Poder Executivo.  

O STF, por unanimidade, julgou os pedidos parcialmente procedentes para reconhecer a omissão inconstitucional da Assembleia Legislativa e a situação de bloqueio institucional, determinando a possibilidade de o Poder Executivo editar ato normativo administrativo em lugar da lei estadual e prosseguir no processo de adesão ao RRF.

Esse julgado é de grande relevância para a jurisdição constitucional brasileira, pois, salvo melhor juízo, se trata do primeiro caso de reconhecimento de “bloqueio institucional” realizado pelo Poder Legislativo. Há importante crítica recente de que, neste caso, o tribunal adotou “(…) uma concepção autoritária de gestão pública na qual o Legislativo acaba sendo tratado como uma instância desnecessária, quando muito legitimadora, para a definição das políticas financeiras públicas pelo Poder Executivo”.[1]

Para contribuir com o debate, a seguir, serão examinados os seguintes três aspectos do julgado: a) a caracterização da omissão inconstitucional, b) o significado do bloqueio institucional, e c) o afastamento da doutrina dos atos interna corporis.

Como destacam Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck, a jurisprudência do STF reconhece que “a inertia deliberandi das Casas Legislativas pode ser objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão”, sendo que para identificá-la, “é importante que se convoque, permanentemente, a principiologia constitucional e a hermenêutica jurídica” para avaliar os casos concretos em toda sua complexidade.[2]

Entretanto, nos termos do voto do relator, ministro Nunes Marques, o cabimento da ADPF e o atendimento de seu requisito legal de subsidiariedade devem ser reconhecidos, em razão do fato de não haver, na situação concreta, outro instrumento disponível de controle abstrato de constitucionalidade, inclusive a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO). Isso porque não haveria a obrigatoriedade de uma “prestação legislativa em face de imposição constitucional de legislar”, mas uma omissão na própria deliberação a respeito do tema, fundada nos princípios mencionados e, especialmente, na eficácia dos direitos sociais que se mostravam ameaçados pelo risco de colapso fiscal do estado[3].

O afastamento do cabimento da ADO levanta a questão interessante de saber se o tribunal identificou uma nova espécie de omissão legislativa inconstitucional consistente não na produção de uma norma jurídica constitucionalmente exigida, mas na própria tomada de decisão legislativa sobre um projeto, inclusive, se assim entender, para rejeitá-lo em favor de outra alternativa legislativa[4].

Nessa direção de reconhecer um caso diferenciado de inconstitucionalidade por omissão, o tribunal entendeu pela existência de um “bloqueio institucional” por parte do Poder Legislativo. Embora a expressão seja mencionada em diversas passagens do acórdão, não há uma definição clara de seus contornos, requisitos e hipóteses. De todo modo, é pontuado que os “bloqueios político-institucionais se traduzem em barreiras à efetividade dos direitos e garantias fundamentais” e que a omissão persistente da Assembleia Legislativa em apreciar o Projeto de Lei ocasiona esse bloqueio que impede que Minas Gerais supere “o quadro objetivo de colapso fiscal[5].

Mencionando a experiência da Corte Constitucional Colombiana com o caso do deslocamento forçado de pessoas (T-025/2004), em que a Corte adotou mecanismos de litígios estruturais para intervir em políticas públicas, o ministro relator faz referência às ADPFs 709 e 742 (políticas públicas de combate à Covid-19 para os povos indígenas e comunidades quilombolas, respectivamente) para defender que “o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de bloqueio institucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões primariamente políticas, sem que se possa cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes”.[6]

O desafio aqui é como compreender dogmaticamente essa nova modalidade decisória em face de outras, em que o Judiciário é chamado a intervir em políticas públicas mediante decisões significativamente distintas do binômio constitucionalidade/inconstitucionalidade, como, por exemplo, o “estado de coisas inconstitucional” reconhecido na ADPF-MC 347[7] (sistema carcerário) e o “compromisso significativo” estabelecido na ADO 54[8] (políticas de combate ao desmatamento).

No caso presente, o “bloqueio institucional” parece ser direcionado a uma omissão de um Poder em específico que impossibilita a concretização de mandamentos constitucionais. Diferentemente de um conjunto de ações e omissões de todos os Poderes que implicam uma violação massiva a direitos fundamentais (como no caso do estado de coisas inconstitucional), aqui se trata de avaliar os limites de discricionariedade de um órgão público em relação a uma ação ou omissão.

Além disso, as formas de atuação da jurisdição constitucional nos litígios estruturais como a determinação elaboração de planos e monitoramento de políticas públicas, liberação de recursos orçamentários e coordenação de órgãos públicos parece não estar presente aqui. Houve, na prática, o suprimento da exigência de lei em sentido formal por decisão judicial para que, por ato administrativo, pudessem ser reguladas as condições pelas quais Minas Gerais iria aderir ao RRF. Trata-se, portanto, de decisão próxima à questão do controle judicial do processo legislativo, de suas normas e práticas.

Isso leva ao terceiro ponto do presente artigo, em que o tribunal afasta a doutrina dos atos interna corporis. O tema é muito sensível e diz respeito ao princípio da separação de poderes e sua relação com a democracia. A autonomia e discricionariedade procedimental são garantias da independência do Legislativo, que, além das disposições constitucionais sobre competência para fixação de suas normas regimentais, se relacionam diretamente com as características da atividade político-parlamentar em democracias plurais, representativas e deliberativas.

Voltando ao caso, há passagens do acórdão que apontam para um juízo negativo sobre a definição da agenda da Assembleia Legislativa, em que se critica sua “inércia reiterada e persistente” e “apatia e omissão”, de modo que a decisão do STF seria um incentivo à “saída do estado de letargia” do órgão legislativo[9]. Ainda que conste apenas do relatório do acórdão, trata-se de linha argumentativa corroborada pelo parecer do PGR no sentido de que estaria “a gestão administrativa e financeira do Estado de Minas Gerais, no caso em tela, submetida ao puro arbítrio do Legislativo”.

A caracterização do “bloqueio institucional” como espécie de omissão legislativa aponta, ainda que de modo implícito, para uma valoração das razões pelas quais a Assembleia Legislativa não levou o Projeto de Lei à deliberação. Isso ressoa com as colocações de Jorge Miranda ao discorrer sobre as omissões inconstitucionais no sentido de que deve haver uma avaliação de circunstâncias fáticas para formular-se “um juízo sobre o tempo em que deveria ser produzida a lei: nenhuma omissão pode ser descrita em abstracto, mas somente em concreto, balizada entre determinados eventos, estes de sinal positivo, (…) e terá de concluir pela omissão, sempre que, tudo ponderado, reconhecer que o legislador não só podia como devia ter emitido a norma legal”.[10]

Embora a doutrina dos atos interna corporis seja prevalecente no STF[11], o tribunal sinalizou que poderá utilizar também os princípios constitucionais como parâmetros de controle do devido processo legislativo – essa possibilidade foi, inclusive, deixada em aberto no julgamento do RE 1.297.884, em que elaborou a redação da Tese 1.120[12].

Na mesma linha, no julgamento da ADI 6.968, o tribunal entendeu que as Casas Legislativas não estão obrigadas a justificar a atribuição de urgência a determinados projetos, pois os critérios para tanto seriam matéria “genuinamente interna corporis”, salvo a ocorrência de “eventuais vícios ocorridos durante tramitação” que poderão ser levados a conhecimento do tribunal[13].

No caso da ADPF 983, parece ter havido a avaliação da suposta falta de justificativas para a ausência de atribuição de urgência política para a deliberação do Projeto de Lei. Isso revela um ponto a ser esclarecido na jurisprudência atual do tribunal, pois ora se entende que as justificativas para a definição de urgência legislativa é matéria exclusivamente interna corporis ora se entende que há limites constitucionais ao exercício dessa competência do poder de agenda das Casas legislativas, especialmente no caso de omissão inconstitucional.

Deixa-se registrado que se concorda com a segunda posição teórica de que a autonomia e discricionariedade procedimentais das Casas legislativas – como todas as competências dos poderes constituídos  – devem respeitar as regras e os princípios constitucionais, para que, de um lado, não haja o atropelo dos procedimentos legislativos que inviabilizem o debate público e a formação de opiniões pelos parlamentares sobre as proposições em discussão, e, de outro, não haja a morosidade excessiva injustificada na apreciação de proposições que constitucionalmente demandam um posicionamento legislativo.

Contudo, a atuação da jurisdição constitucional nessa seara deve ser pautada por uma postura de grande deferência, somente intervindo em casos de graves distorções ao procedimento de tomada de decisão aferido com base em uma análise profunda das circunstâncias dos casos concretos, como acima retratado.

No julgamento da ADPF 983, a despeito de breves menções aos “notórios” elementos fáticos de crise fiscal e orçamentária do estado, deveriam ter sido examinadas em maior profundidade as alegações da Assembleia Legislativa de que faltavam informações relevantes para a tomada de decisão a serem enviadas pelo próprio Poder Executivo estadual, inclusive para a adoção de outras providências e ajustes que poderiam mitigar as condições adversas do cenário fiscal experimentado pelo estado.

O caso, portanto, abre uma nova frente de atuação da jurisdição constitucional no controle da omissão legislativa, que deve passar por maior refinamento dogmático para a identificação do significado e hipóteses do “bloqueio institucional” nos casos concretos.

[1] Almir Megali Neto / Diogo Bacha e Silva / Marcelo Andrade Cattoni Oliveira, “A ‘coordenação institucional’ do Supremo Tribunal Federal como mecanismo de substituição do Poder Legislativo: A ADPF 983 e o regime de responsabilidade fiscal do estado de Minas Gerias”, disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-coordenacao-institucional-do-supremo-tribunal-federal-como-mecanismo-de-substituicao-do-poder-legislativo-a-adpf-983-e-o-regime-de-responsabilidade-fiscal-do-estado-de-minas-gerais.

[2] Gilmar Ferreira Mendes / Lenio Luiz Streck, “Comentários ao art. 103”, in J. J. Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck e Gilmar Ferreira Mendes (orgs.), “Comentários à Constituição do Brasil”, São Paulo: SaraivaJur, 2023.

[3] STF, Pleno, ADPF 983, Rel. Min. Nunes Marques, j. 03/07/2023, p. 21-2.

[4] Vale lembrar que, neste mesmo contexto fático do RRF no Estado de Minas Gerais, foi ajuizada a ADPF 938, também pelo Governador do Estado em face da Assembleia Legislativa, em que se pleiteava provimento judicial que determinasse o dever de apreciação legislativa do Projeto de Lei. Entretanto, em razão de o Governador ter retirado seu pedido de urgência posteriormente, a ADPF 938 foi extinta sem julgamento de mérito por perda de objeto.

[5] STF, Pleno, ADPF 983, Rel. Min. Nunes Marques, j. 03/07/2023, p. 28.

[6] STF, Pleno, ADPF 983, Rel. Min. Nunes Marques, j. 03/07/2023, p. 31.

[7] STF, Pleno, ADPF 347, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 04/10/2023.

[8] STF, Pleno, ADO 54, Rel. Min. Cármen Lúcia, Redator para acórdão,Min. André Mendonça, j. 03/04/2024.

[9] STF, Pleno, ADPF 983, Rel, Min. Nunes Marques, j. 03/07/2023, p. 46.

[10] Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional”, t. VI, 3ª ed., Coimbra, Coimbra, 2008, p. 324.

[11] Para síntese análise crítica da jurisprudência do STF sobre a doutrina dos atos interna corporis, ver Victor Marcel Pinheiro, “Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira”, Rio de Janeiro, GZ Editora, 2024, Cap. 7.

[12] Tese do Tema 1.120: “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis”.

[13] STF, Pleno, ADI 6.968, Rel. Min. Edson Fachin, j. 20/04/2022, p. 13-4.

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