Ainda a sub-rogação do segurador e a arbitragem: novos desafios para o STJ

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A seguradora que indeniza o segurado estaria vinculada à cláusula de arbitragem do contrato entre ele e o causador do dano? Em artigo anterior publicado neste JOTA[1], defendi que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) dava margem para responder tanto sim quanto não.

A pergunta nasce do art. 786 do Código Civil, segundo o qual o segurador se sub-roga “nos direitos e ações” do seu segurado contra o autor do dano até o limite do valor indenizado. O problema é saber se a cláusula compromissória está nesses “direitos e ações”.

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No ano passado, o STJ proferiu dois julgados importantes sobre o assunto. São o Recurso Especial 1.988.894-SP (4ª Turma)[2] e o Recurso Especial 2.074.780-PR (3ª Turma)[3]. Em ambos, o tribunal concluiu que o segurador de fato se vincula à cláusula compromissória do negócio jurídico entre o segurado o causador do dano.

Aparentemente, o debate estaria superado. Este artigo busca mostrar que não. O motivo é o seguinte: embora tenham o mesmo ponto de chegada, as razões de decidir dos acórdãos são distintas e – em tese – podem levar a resultados bem diferentes nos casos concretos.

No primeiro, a 4ª Turma foi expressa em dizer que a sub-rogação do art. 786 não transmite a cláusula compromissória ao segurador. Aqui, o tribunal manteve coerência dogmática com seu precedente sobre cláusulas de eleição de foro (Recurso Especial 1.962.113-RJ), em que definiu que a sub-rogação só transfere o direito material e não os elementos processuais atrelados à obrigação respectiva[4].

Então qual a base para estender a arbitragem à seguradora? Para a 4ª Turma, o crucial é o conhecimento prévio dela sobre a existência da cláusula de arbitragem no contrato. Assim: “[a] ciência prévia da seguradora a respeito de cláusula arbitral pactuada no contrato objeto de seguro garantia resultado na sua submissão à jurisdição arbitral, por integrar a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado na avaliação de risco pela seguradora, nos termos do artigo 757 do Código Civil” (item 1 da ementa).

Nessa linha de argumento, haveria uma manifestação de vontade “implícita” do segurador – quando menos nos seguros-garantia sobre obrigações contratuais. Ao tomar ciência da cláusula o segurador teria anuído com ela, ainda que tacitamente, para resolver suas próprias disputas contra o tomador da apólice (causador do dano nessa espécie de seguro).

A tese gera algumas dúvidas. Na sua lógica, a questão não mais remete ao alcance da sub-rogação legal e sim a entender, em cada caso concreto, se o segurador manifestou vontade por se vincular à arbitragem. A valer a tese do STJ de maneira indistinta, bastaria a aceitação tácita e presumida, decorrente quase que de forma automática da simples leitura do instrumento de contrato ao subscrever o risco.

O problema desse argumento é sua premissa. Escolher a arbitragem é renunciar ao acesso ao Judiciário e, como tal, uma declaração nesse sentido exige interpretação estrita (art. 114, Código Civil). Como regra no Direito Privado, o silêncio não importa anuência, salvo se as circunstâncias ou os usos assim o indicarem (art. 111, Código Civil).

Fica em aberto se a mera atividade de subscrever o risco, sem mais considerações, seria adequada para extrair uma declaração de vontade tão peremptória assim do segurador. Ou se, ao invés disso, o intérprete não estaria presumindo indevidamente a renúncia ao direito de acesso ao Judiciário a partir do silêncio.

Afinal, o risco subscrito no seguro-garantia é a chance de o tomador inadimplir suas obrigações – algo que na rotina dos casos independe do método que as partes elegeram para resolver seus conflitos. O que a seguradora analisa é o caráter, o crédito e a capacidade daquela empresa de entregar a prestação garantida.

Mais: se ler o contrato para analisar o risco faz presumir que o segurador concordou com a cláusula compromissória, essa presunção há de ser tomada como relativa – do contrário, ela não seria uma presunção autêntica. O que importa dizer que o segurador sempre pode produzir prova em contrário para afastá-la nas disputas concretas. Por exemplo: mostrar que registrou por escrito sua ressalva à arbitragem por meio de comunicado escrito às partes ou instrumento negocial apartado.

No segundo julgado, a 3ª Turma seguiu o entendimento mais tradicional de contemplar a cláusula sobre resolução de disputas dentre os “direitos e ações” do art. 786 do Código Civil. Consta na ementa: “A sub-rogação prevista no art. 786 do CC/02 opera a transferência à seguradora dos direitos e ações que competiam ao segurado, incluindo as cláusulas assessórias e formas de exercício do direito de ação, entre as quais se insere a cláusula compromissória” (item 5 da ementa). Esse acórdão já serviu de precedente para julgar ao menos mais um caso sobre o mesmo tema na 3ª Turma[5].

De plano, veja-se que apesar de seus resultados convergirem os fundamentos dos acórdãos são radicalmente opostos. Diferente do julgado anterior, a ratio desse segundo indica que o segurador se vincula à arbitragem de maneira categoria. O que há é verdadeira imposição legal do art. 786 do Código Civil, e não anuência “implícita” para se vincular. A rigor, só uma declaração negocial expressa da seguradora afastaria a convenção arbitral do contrato de seu segurado, que do contrário ocorre por força imediata da lei.

Essa incongruência entre fundamentos tente a gerar problemas práticos. Imagine-se apólice de seguro-garantia para assegurar a entrega de uma fábrica. O contrato de empreitada entre o dono da obra (segurado) e o empreiteiro (tomador) prevê que suas disputas serão resolvidas por arbitragem na “Câmara A”.

Já o contrato de contragarantias entre a seguradora e o empreiteiro, firmado antes, se refere à “Câmara B” para sanar litígios entre eles. O construtor abandona a obra e a seguradora indeniza o dono pelos prejuízos. Surgindo disputa contra o tomador ao exercer o direito de regresso, qual cláusula prevalece?

Pelo primeiro julgado, seria a que elege a Câmara B, pois o acordo expresso no contragarantias prevalece sobre eventual anuência meramente implícita do segurador. O segundo julgado, porém – se for levado às últimas consequências – indicaria a Câmara A. Isso porque a sub-rogação legal, por vir depois da assinatura do contragarantias, prestigiaria a cláusula do contrato assegurado em detrimento o instrumento de contragarantia.

Antes de arriscar uma resposta definitiva ao problema, este texto quis muito mais provocar a reflexão. O fato é que, apesar do seu desenvolvimento notável em arbitragem, a jurisprudência do STJ ainda tem lacunas e contradições quando faz essa matéria dialogar com o Direito dos Seguros.

Na data em que esse artigo é redigido, pende o exame de embargos de divergência no REsp 2.074.780-PR – o que abre boa oportunidade para o tribunal as resolva.


[1] Disponível em: https://www.jota.info/artigos/sub-rogacao-do-segurador-e-arbitragem-o-que-dira-o-stj.

[2] REsp 1.988.894-SP, Quarta Turma, Rel.ª Min.ª Maria Isabel Gallotti, DJe 15.05.2023.

[3] REsp 2.074.780-PR, Terceira Turma, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, DJe 24.08.2023.

[4] REsp 1.962.113-RJ, Terceira Turma, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, DJe 25.03.2022.

[5] AgInt no REsp 1.958.434-SP, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 14.08.2024.

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